Rodrigo Bouillet
Considerando que esta edição inaugural de Aurora trata da produção de filmes brasileiros da década de 1990, pareceu-me importante retornar aos escritos do catálogo da mostra Cinema Brasileiro Anos 90: 9 Questões, realizada no CCBB-RJ, em março de 2001. Os pontos de algumas indagações já eram anacrônicos à época, certos textos não sobreviveram ao tempo. Seja como for, é inquestionável sua importância documental, aliás, uma das raras tentativas de interpretação do período, feito ainda no calor da hora (ou melhor, da década).
O presente ensaio pretende-se um diálogo com o texto O Cinema Popular Acabou?, de Hernani Heffner. Valho-me de sua “versão aumentada”, disponível na página da finada revista de crítica cinematográfica Contracampo. Importante ressaltar o título. No catálogo, comparece apenas O Cinema Popular Acabou?. Na versão redux, após esse mesmo título e o crédito ao autor, consta Cinema popular: algumas questões, seguindo-se então o texto, sugerindo que este era o original. Fica o apontamento: lançar a pergunta sobre se o “cinema popular” acabou (o que significa admitir sua existência material passada ou presente) é bem diferente de anunciar que se quer ventilar algumas questões sobre o assunto (podendo-se chegar à conclusão de que se trata de ideologia liberal).
Na abertura do texto, Heffner distingue duas posições frente ao conceito de “cultura popular”. Uma, “dos românticos, no século XIX, aos modernos, no século XX”, na qual o “ser brasileiro” conforma-se na figura do “homem comum”, que carrega em si sentidos de “autenticidade” e “pureza”. Outra, da “indústria cultural”, que se consolida a partir dos anos 1960. Esta é considerada pelo primeiro grupo como uma ameaça, pois “desfigurava ou mesmo provocava o seu [da “cultura popular”] desaparecimento, sobrepondo-se como manifestação ‘fácil’ (e por vezes lucrativa, ao contrário do evento autêntico) ou lazer imediato e apelativo”. De certo, a “indústria cultural” era defendida por seus partícipes (em determinados casos, acionistas) como um processo da “cultura popular” de atualização com melhoramentos. Apenas uma “transposição a um meio mais eficiente, duradouro e democrático das obras da cultura como um todo, não configurando uma padronização técnica, estética e ideológica a priori”.
Importante reter do autor a questão que de fato se coloca em disputa: os entrelaçamentos entre o modo de vida (material e ideológico) de um determinado e grande contingente populacional (“segmentos humanos mais amplos, pobres e ignorados”), a apreensão de sua identidade e a “tentativa de construção ou de reforma do estado-nação”.
Heffner, então, propõe “verificar o quanto elas [as duas posições acima descritas] penetraram o cotidiano de um campo como o cinema”. Segundo ele, nos anos 1950 “cinema popular” era sinônimo de cinema comercial (o que perdura até hoje), ou seja, filmes que se pretendem de amplo consumo e que, para isso, se valem tanto de “uma relação de aceitação, familiaridade ou demanda” quanto da narrativa clássica para atingir um grande contingente de público pagante. Na década seguinte, no Brasil, passou a significar cinema engajado, “um cinema realizado [por uma classe média politizada] em nome e em prol das classes populares, mais especificamente do proletariado, assumindo um olhar crítico da sua visão de mundo”. Nos anos 1970, “surge mais um sentido, desta vez recuperando o conceito romântico de popular”, naqueles termos de “autenticidade” e a “pureza”, não maculado pela “indústria cultural”. Assim, este “cinema popular” seria realizado por cineastas advindos e ideologicamente alinhados com os estratos mais baixos da sociedade, além de primitivos, naïfs no seu modo de fazer. No decênio posterior, os estudos de história do cinema brasileiro revelariam uma suposta tradição popular no cinema brasileiro, “prestando-se assim a servir também como signo de um ser brasileiro”.
O autor observa que “o cinema praticado nos anos 1990 propicia um bom terreno para a verificação dos destinos desses “cinemas populares” forjados já há algum tempo”, quais sejam, o cinema comercial, o cinema engajado, o cinema naïf e a tradição popular. Assim, vai traçando concisas linhas de longa duração histórica sobre cada um deles. Sua ideia é “esclarecer sobre o que ainda seja considerado popular em termos cinematográficos no Brasil contemporâneo”.
Sobre o cinema comercial, este recorre a temas e a tipos identificados ao universo das classes populares e médias que consomem os filmes assim como “a um cinema de gêneros (…) e à uma ênfase no dramático, como que reencenando a nação em um modo compreensível e assimilável (…) [a partir da] adequação aos padrões clássicos do espetáculo cinematográfico, no qual a emoção se sobrepõe à reflexão”. Acerca do cinema engajado, “em vez de ser a voz do oprimido [como nos anos 1960], aprendeu-se a dar espaço para que ele se exprimisse diretamente, respeitando a dinâmica interna de suas manifestações culturais”. Contudo, este avanço “aparentemente afeta a uma geração específica [os egressos dos anos 1960], [e] vem acompanhad[o] pelo abandono quase que completo deste tipo de proposição cinematográfica”. Quanto ao cinema naïf, seus cineastas “não conseguiram também chegar à contemporaneidade em atividade regular, nem deixaram seguidores expressivos”, diluindo-se no “fetiche da produção de baixo custo, retomado de tempos em tempos pelas novas levas de cineastas em nada populares e associado a suposto estilo trash movie”. Colaborou para isso o aprofundamento do projeto neoliberal no país, que, por se tratar de uma totalidade, afeta todas as acepções de “cinema popular”.
“As transformações na configuração do mercado interno – fim das formas de exibição tradicionais, substituídas pelos multiplexes altamente concentrados em áreas densamente povoadas, assim como o encarecimento das entradas e conseqüente concentração do público na classe média – e o fim da base de produção que alicerçava seu trabalho, como, por exemplo, a famosa Boca do Lixo, contribuíram decisivamente para a descontinuidade de suas carreiras”. (Heffner, 2001)
Ou seja, não se trata reduzir o debate à verificação de quem vai ou não ao cinema, quem faz ou não filmes. Tais questões só podem ser entendidas caso inseridas em seus contextos de desmantelamento da URSS (e o descrédito de superação do capitalismo), de (contra-)reformas trabalhistas, de gentrificação das cidades, de privatização das decisões e financiamentos das atividades culturais via leis de incentivo, e de recalibragem da participação do Brasil nos negócios do Cinema a um papel diminuto em próprio solo como produtor, mas ampla e plenamente domesticado como consumidor de produtos estadunidenses – a classe média vai ao paraíso de super-heróis e princesas em sessões em shopping centers com estacionamento.
Conforme Heffner, as respostas comerciais mais significativas do período vieram dos filmes associados ideológica e/ou materialmente às emissoras de televisão – “na prática a verdadeira cultura popular de massa do Brasil contemporâneo” – e das obras fundamentadas nas expressões romantizadas de “autenticidade” e “pureza” do “ser brasileiro”, “porque intocado pelas distorções do mundo contemporâneo” – o que, talvez, possa funcionar como um mecanismo compensatório pela degeneração acelerada de valores de solidariedade.
Acabaram-se as questões?
Seja como for, ambas as proposições “se vêem submetidas ao ‘bem feito’, isto é, a um padrão de mercado definido pelos limites de uma indústria cultural, pois a cultura popular, classicamente uma resistência à exclusão, conforma-se apenas ao valor de uso e não ao valor de troca”.
Este apontamento nos faz recobrar o início do texto em análise. Nele, Heffner ressalta como “a expressão ‘cinema popular’ é certamente contraditória em termos, sendo a sétima arte um produto típico da Segunda Revolução Industrial e um dos maiores segmentos da indústria cultural do século XX”. Ou seja, compõe a categoria – por sua gênese e desenvolvimento numa sociedade de desigualdades – uma contradição que se traduz entre os artefatos tecnológicos, arranjos institucionais, formação de conglomerados globais dominados por poucos e a impossibilidade de acesso/protagonismo/participação de amplas camadas da população nacional (exploradas, expropriadas, empobrecidas, vilipendiadas) aos diversos processos do cinema.
Afinal de contas, qual (diminuta fração de) classe da população usufrui integralmente das melhores condições e meios de criação, produção, circulação, estudo, crítica, reconhecimento entre os pares e interlocução governamental? Por óbvio, estratos superiores da classe média. Em algum momento isso se deu de forma substancialmente diferente? Caso não, que “tradição popular” é essa na tradição popular no cinema brasileiro? A quem interessa a hipótese de uma “tradição popular”?
Seria uma tradição que se forja de maneira consciente, orgânica, articulada, consequente ou seria idealismo academicista? Nos termos de Clóvis Moura, como podemos definir esses estudos? São uma sociologia da práxis: de intervenção na realidade, de superação das contradições, de destituição da fração de classe que detém o poder sobre o Cinema no Brasil? Ou são uma sociologia acadêmica, de viés culturalista (muito afeita aos choques culturais entre baixa e alta cultura, etc, dissociando-os do modo de produção que os sustentam, dando vazão a esquemas metafísicos como sincretismo, acomodação, adaptação, aculturação e assimilação); pontualmente crítica (incapaz de problematizar o sistema); quando muito reformista (impedindo a teorização revolucionária); e por isso vinculada à ordem, à manutenção de grupos hegemônicos (no mercado e na própria academia)?
Neste sentido, a criação de uma suposta tradição popular no cinema brasileiro “como signo de um ser brasileiro”: 1 – confere ao Cinema Brasileiro um significado ilusório de lugar facultado a amplos acessos e oportunidades a todos os estratos e grupos sociais (numa espécie de “democracia audiovisual”); 2 – tal imaginário de liberalidade garante estabilidade ao grupo hegemônico e aos demais por ele cooptados (pois, se o funcionamento do Cinema Brasileiro é satisfatório, mudanças são desnecessárias, na realidade, indesejadas); 3 – com silenciamento ou anulação de disputas, facilita a apropriação da ideia de tradição popular pelos grupos hegemônicos, que passam a se apresentar como seu porta-voz; 4 – evita conflitos abertos entre grupos hegemônicos da classe cinematográfica e academia bem como dentro de ambos os espaços (uma vez que a academia forma diversos agentes da classe cinematográfica); 5 – justifica à sociedade brasileira a existência de um espaço acadêmico ao Cinema, ao revelar o “ser brasileiro” da suposta tradição popular no cinema brasileiro.
Como nos ensinou Friedrich Engels em A origem da família da propriedade privada e do estado, existe a exploração de um gênero sobre outro. Como nos instruiu Clóvis Moura em suas obras, os séculos de acumulação capitalista europeia sobre a escravização de africanos foi refuncionalizada em racialização na sociedade de classes – o escravizado passa a ser negro, marcador estrutural de inferioridade, uma nova etapa de exploração burguesa de mais da metade da população brasileira e instrumento de cisão da classe trabalhadora. Neste sentido, para superação da contradição, um “cinema popular” brasileiro, de acordo com nossa formação social, significa, necessariamente, um cinema que corresponda aos interesses da classe trabalhadora, que é majoritariamente negra (e, por isso, compromissado com a desracialização), informado pelo feminismo classista – sem ignorar as demais opressões – o que só poderá se dar plenamente com a superação do capitalismo.
Referências
ENGELS, Friedrich. A origem da família da propriedade privada e do estado.
HEFFNER, Hernani. O Cinema Popular Acabou? (versão aumentada). In: Cinema Brasileiro Anos 90: 9 Questões. CCBB-RJ, 2001. Disponível em http://www.contracampo.com.br/26especial/frames.htm
MOURA, Clóvis. O negro – de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Conquista, 1977.
___. A sociologia posta em questão. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978
___. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983.
___. Dialética radical do negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
___. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.