Adriano Del Duca
O futebol e o cinema são dois espetáculos de massas que emergiram na modernidade do século XIX mas que inúmeras evidências históricas demonstram que se vinculam com práticas sociais imemoriais. Algo em suas estruturas imagéticas, cinéticas e narrativas, são capazes de amealhar a atenção de milhões em um ponto em que objetos e corpos movimentam-se entre a arte e a fúria. Filmes de futebol podem ser tediosas crônicas de torcedores sobre seus clubes e craques do coração, mas também podem guardar primorosos registros do campo de jogo e das contradições que o esporte como fato social abarca em suas relações.
Passe Livre, filme de 1974, dirigido por Oswaldo Caldeira, é um documentário que busca demonstrar que, como qualquer espetáculo, a cena do futebol é composta por sujeitos reais que trabalham, e a lógica que organiza essa relação é a mesma que rege as relações de trabalho na produção capitalista: exploração e lucro. Logo na abertura a voz over que narra faz uma citação indireta do mítico Pelé: “Homem livre em futebol? homem livre só conheço um, o Afonsinho, este sim pode-se dizer (…) deu o grito de independência ou morte. Ninguém mais, o resto é conversa”.
Afonsinho, meio-campo que se destacou no Botofogo no final dos duros anos 60 é o protagonista dessa crônica sobre o universo do futebol como profissão, e das suas relações profundamente patrimonialistas e escravistas. O trecho de abertura que tem evidente intuito de abrir a discussão sobre a conquista do direito ao controle do próprio passe dos jogadores, tema central do filme, revela indiretamente aspectos sociais marcantes do futebol brasileiro, e que o filme discute nas entrelinhas: os jogadores não têm liberdade, e a conquista de direitos só foi possível pela via judicial, à um sujeito branco, escolarizado e de classe média. A fala de Pelé escancara o aspecto étnico e social que atravessa o controle das carreiras e corpos dos jogadores.
Apesar de a expressão cultural do futebol ser absolutamente popular e de ter sua potência espraiada pelas ruas, terreiros, canchas, praças e confins, sua origem remonta a processos culturais elitizados. A chegada do futebol moderno em terras brasileiras se deu pelo típico processo de assimilação da cultura estrangeira europeia pela aristocracia local. Ideias fora de lugar, exploração de corpos subalternizados e muita bola no pé.
Os footballs eram a princípio agremiações das classes altas que se reuniam ao redor das quatro linhas brancas para assistirem jovens rapazes disputarem as partidas em nome dos clubes que eram sustentados por membros da aristocracia urbana que se formava. No entanto, a popularização da prática, rapidamente foi apropriada pelas comunidades de trabalhadores em subúrbios operários, pequenas cidades interioranas e várzeas rurais.
Assim como outras expressões culturais estrangeiras, a apropriação popular do futebol ultrapassou as regras e os bons costumes das elites e apresentou ao público que consome massivamente o futebol, atletas geniais, verdadeiros artistas da pelota, e um universo rico de picardia, malandragens, imaginários que compunham o drama da vida dos subalternizados, entre o vencer e perder de milhares de boleiros e torcedores. Dentre os jogadores profissionais do futebol moderno brasileiro, a grande maioria é oriunda das classes subalternas, bairros periféricos, rincões do Brasil profundo.
No entanto, a captura do esporte como cultura de massas, utilizado como produto no qual os populares produzem e também consomem o espetáculo, enquanto os proprietários dos modos de produzir apropriam-se das vitórias e lucros, reproduz a mesma lógica social moderna da sociedade que forjou o futebol. Idêntico a qualquer processo social realizado no capitalismo, o futebol é um produto do seu meio – os atletas são trabalhadores profissionais, os proprietários dos clubes e estádios, apropriam-se dos valores gerados por sua atividade, e os torcedores pagam pelo produto movidos por paixões, desejos, fetiches e um cadinho assim de necessidade, seja ela lazer ou fruição estética (sim, a bola em campo é estética).
Passe Livre fala disso tudo ao contar a trajetória do craque Afonsinho que, rebelde, buscou independência de sua atividade profissional, tentando expressar-se no gramado para além de sua impecável condução da bola. Nos anos 1970, sua postura de enfrentamento aos cartolas dos clubes cariocas quanto ao controle de seu modo de vida, e de seu passe como jogador, o levou a destacar-se não apenas como um habilidoso meio-campo, mas também como alguém que impôs a autonomia de seu passe como atleta de futebol.
De alguma forma, o que o filme narra, é que através da luta de Afonsinho para poder ser negociado de forma autônoma, deixando de ser posse de um clube, se expõe a engrenagem de um sistema de controle de corpos de jovens de origem humilde, em maioria afrodescendentes, que eram tratados como mercadorias e tinham suas curtas carreiras como atletas profissionais, mediadas pelos interesses econômicos de senhores, proprietários. Por trás deste processo havia ainda um conjunto complexo de autoridades políticas e posições ideológicas que definiam aspectos comportamentais dos atletas, anulando suas individualidades, posicionamentos políticos e capacidade de influência coletiva.
Em meio a uma ditadura militar em um país estruturalmente desigual e com forte herança escravista, o futebol se alçava como um espetáculo controlado pelas elites no qual os protagonistas eram classificados de acordo com interesses dos donos do jogo. Passe Livre, como um filme político, expõe as estruturas violentas desse jogo, construindo um discurso que ao mesmo tempo que denuncia as formas do espetáculo, elogia as resistências de seus agentes, a força popular da arena, a capacidade inventiva e democrática que compõem as forças em campo.
A disputa entre Botafogo e o jogador Afonsinho é um fato histórico que ilustra bem o clima político vivido nas bases da sociedade brasileira nos anos 1970, em que artistas, atletas, intelectuais, e a sociedade civil como um todo, posicionou-se no espectro político-social. O filme alça, entre os boleiros, alguns personagens da história para narrar uma crônica das resistências contra os poderes políticos e econômicos estabelecidos.
Expoentes do futebol nacional à época tricampeão do mundo, deixam entrever em suas falas quanto à legitimidade da postura rebelde de Afonsinho, e de sua conquista pela liberdade do passe, seus próprios posicionamentos pessoais, repletos de perspectivas patrimonialistas em que os corpos pertencem a um senhor, uma empresa, e, absolutamente reacionários, naturalizam a postura controladora e violenta, como se o controle do passe dos jogadores pelos clubes fosse realmente uma necessidade de mercado. Técnicos como Zagallo, dirigentes e outros cartolas, articulam o discurso dos clubes proprietários dos passes dos atletas, no qual o jogador é uma peça da engrenagem, e não deve expressar-se senão pelos pés. De outro, atletas e ex-jogadores que visualizam a extração de toda a sua potência física e criativa, em troca de bons salários e baixíssima expectativa de um futuro assegurado, expressam a injustiça de suas condições contratuais e laborais, reforçadas pelo contexto repressor vivido no país.
O que poderia soar como pauta de jornalismo esportivo, é o mais puro suco de luta de classes. Ainda que inúmeros atletas ascendam socialmente através dos bons salários e patrocínios, o que se vê é o velho conflito da luta de interesses entre os que produzem e os que se apropriam do valor. Do conflito aparentemente individual de um atleta em busca de liberdade profissional para construir sua carreira promissora nos gramados, brotam uma série de situações dramáticas em que clube, treinador, dirigentes, compõem as forças do status-quo, politizando a disputa em que o jogador não é nada mais que força de trabalho, mas com nenhum direito ou autonomia sobre a própria imagem e atividade realizada.
A experiência de sucesso profissional e autonomia sobre o passe de Afonsinho são contrapostas a carreiras frustradas pela a pressão como a de Barbosa, o goleiro que não defendeu o gol da seleção uruguaia em pleno maracanã, na copa de 1950, e terminou a carreira como bilheteiro do estádio que o maculou, ou da tentativa de Jairzinho em obter o passe livre, e que terminou com a exigência de que se desculpasse publicamente para poder voltar a jogar no Botafogo, episódio motivado por um cartão vermelho que recebeu em campo às vésperas de uma viagem para cumprir agenda comercial com patrocinadores. Na forma como apresenta as situações dos jogadores, o argumento de Caldeira parece indicar que o mérito da conquista do passe livre de Afonsinho, não é meramente judicial, mas reflexo de um privilégio étnico e social que não favoreceria atletas negros.
Formalmente, Passe Livre é um documentário convencional que intenta articular inúmeros elementos da cultura nacional – a musicalidade, referências populares da música e do esporte compõem o enredo. É critico no seu discurso político, mas lírico em seu elogio ao futebol e à arte da bola. Assim como Subterrâneos do Futebol de Maurice Capovilla, lança um olhar crítico à economia política do futebol, à cultura brasileira racista e desigual, mas em um franco diálogo positivo com o interesse popular que o esporte jogado com os pés mobiliza, dentro e fora do gramado.
O Rio de Janeiro e o futebol carioca aparecem como centros de uma brasilidade que se expressava nas artes e desportos. As motivações que impulsionaram o jovem Afonsinho a trocar o XV de Jaú, no meio semi-rural do Estado de São Paulo, pela agitada e famosa cidade da Guanabara, também dimensiona aspectos típicos da nacionalidade brasuca, o trânsito interior-litoral, tão comum a camponeses e operários, é também a rota da bola, quando se trata alavancar a carreira de um boleiro promissor.
É interessante observar que mesmo para um jovem branco de classe média, a experiência na metrópole em busca de reconhecimento e sucesso profissional, esbarra nas convenções, nos modos de produzir e vender o espetáculo e seus protagonistas. É claro que na sociedade pós 1968, imersa em uma ditadura robusta, a violência e censura voltam-se contra todos, inclusive ao modo de vida de jovens atletas e artistas.
Diversos jogadores como Tostão, o técnico João Saldanha, Sócrates, o próprio Afonsinho, entre outros, ficaram marcados por seus posicionamentos políticos à esquerda. O comprimento da barba e dos cabelos, eram pretextos ideológicos para a perseguição. No entanto, refletem uma situação típica da época em que valores morais e comportamentais também estavam relacionados a perspectivas político-ideológicas em relação ao regime político.
Nesse embate, a oposição entre os interesses dos dirigentes e de jogadores e torcedores expressam a contradição fundamental da sociedade – capital versus trabalho – mas também indicam que o futebol é potencialmente político na medida em que dinamiza em sua arena os conflitos da sociedade em que está inserido. Como um fenômeno da cultura de massas é profundamente democrático e expõe as fraturas do social. Passe Livre, ao aprumar suas lentes na direção do gramado, registra os conflitos que se ancoram na cultura para além da pelota e dos pés que aguçam a atenção dos olhares torcedores.