A partir da reabilitação do nome de Adélia Sampaio e da contemplação de Viviane Ferreira no Longa BO Afirmativo (Edital SAv/MinC/FSA n° 3, de 18 de janeiro de 2016, processo seletivo de projetos de produção independente) uma fração dos escritos sobre cinema negro brasileiro refletiu a expectativa acerca do segundo filme preencher as mesmas condições de produção do primeiro: (1) longa-metragem (2) ficcional (3) dirigido exclusivamente por uma mulher negra (4) com estreia em circuito comercial.
Entre Amor Maldito (1984) e Um Dia com Jerusa (2021) estão o processo de redemocratização do país, dois impedimentos presidenciais (um deles mediante golpe), as vicissitudes das políticas cinematográficas (que vão e vêm, mas infalivelmente direcionam-se ao longa-metragem), a reconfiguração do circuito exibidor (encapsulando-se em shopping centers), a institucionalização do movimento negro, o reconhecimento do Brasil como um país racista, as políticas afirmativas, o abandono do debate racial negro radicalizado (nos termos propostos, por exemplo, por Clóvis Moura, mas que agora ressurge renovado!), os primeiros editais do audiovisual racialmente orientados, a “Excelência Preta” no cardápio de filmes do Telecine, prêmios internacionais, metade dos longas lançados comercialmente entre 1995 e 2021 assistidos por até 10mil pessoas em um país de mais de 200milhões de habitantes, neoliberalismo, social-liberalismo, protofascismo (e, em 2023, social-liberalismo novamente, em versão ainda mais rebaixada).
Entre um filme e outro, ao menos 13 diretoras negras brasileiras realizaram obras que preencheram parcialmente as tais condições de produção (ou, melhor dizendo, de mercado). Este escrito pretende-se uma breve contribuição para evidenciar os filmes de estreia por elas dirigidos – dentro do espírito da revista de ventilar títulos pouco citados, de instigar agendas de pesquisas.
O levantamento não se ambicionou exaustivo e pode haver omissões. As eventuais falhas certamente seriam maiores sem a contribuição do amigo Clementino Jr., cúmplice no cineclubismo.
Por ser um longa em episódios, cada um dirigido por diferentes pessoas, não incluí na relação, mas faço aqui constar a referência a 5 x Favela – Agora por nós Mesmos (2010), de Cacá Diegues, Cacau Amaral, Cadu Barcelos, Luciana Bezerra, Luciano Vidigal, Manaíra Carneiro, Rodrigo Felha e Wagner Novais.
Saúdo todas as diretoras que disponibilizam gratuitamente seus filmes em plataformas de compartilhamento de vídeos, que os semeiam em sistemas P2P, e agradeço nomeadamente a Lilian Solá Santiago, Juliana Vicente (extensivo a Elisa Suyá) e Tatiana Lohmann por facilitarem o acesso às suas obras.
1 – Lilian Solá Santiago
Família Alcântara (2006), de Daniel Solá Santiago e Lilian Solá Santiago, não é um longa-metragem, mas sim um média-metragem para a TV. Importante mencioná-lo, pois, até onde avançaram as pesquisas, trata-se do primeiro filme dirigido por uma mulher negra desde Fugindo do Passado (1987), ficção em episódios de Adelia Sampaio, a ser exibido comercialmente.
O documentário dos irmãos trata da família-título, cerca de 70 pessoas descendentes de africanos que vivem em Rio Piracicaba, Minas Gerais. As tradições culturais são mantidas e difundidas pelos membros da família através do teatro, do coral e do congado, muitas vezes sendo solicitados para apresentações ao lado de artistas de reconhecimento nacional.
Alternam-se depoimentos da família, de pessoas próximas, imagens do cotidiano e de apresentações musicais e de peças.
Os membros recontam, através das gerações, as tradições, os modos de vida que servem de inspiração. Arte, cultura e relações familiares se entrelaçam nos relatos do que se enfrentou na série histórica de desagregação desde o sequestro dos antepassados. De um lado, a passagem para o trabalho assalariado que não se comprovou em novas possibilidades; a vida de escassez; a moradia precária; o trabalho rústico; o trabalho infantil; a dívida com o armazém. De outro, a festa de Nossa Senhora do Rosário; a importância desse festejo e as adaptações necessárias para a manutenção do próprio evento; o percurso pelas ruas da cidade e a disputa pela ocupação da igreja; o resgate da tradição dos ensaios da congada na área do antigo quilombo; a passagem da música das festas tradicionais para constituição do coral; o significado das canções que se perde ainda que permaneçam sendo cantadas.
2 – Tatiana Lohmann
Solidão e Fé (2011) é um documentário que acompanha um período da vida de alguns peões de rodeio. Além dos depoimentos, o filme apresenta a competição, os preparativos técnicos do evento, a adequação aos novos tempos de menor número de intensivos maus tratos aos animais, o circuito de festivais, as viagens pelos estados, o tempo fora de casa, a saudade, a vida familiar, os acidentes, a técnica, a fé, os caminhos e descaminhos da/na vida de vencedores, o papel de provedor de família, as diferenças entre as antigas e novas gerações de peões.
Ao explorar esta última questão, o filme cresce bastante no contato com as gerações mais velhas. São muitas histórias onde valores morais como honradez e justiça não raro, quando infringidos, traduzem-se por vingança disfarçada de defesa da honra e justiçamento dissimulado de restituição de harmonia social. Neste momento, ao acessar homens mais velhos, é que o machismo surge diretamente na fala dos personagens – tema também importante para Lohmann.
O filme oscila bastante de foco. Ora centra-se na figura dos peões ora detém-se sobre as tentativas da cineasta em explicar sua decisão pelo tema abordado (ao que passamos, de forma interessante, a descobrir junto com ela) ou ainda, em momentos pontuais, dedica-se a explorar diferenças entre o masculino e o feminino em chave determinista, a-histórica (“espantava com a rudeza, com a aspereza do viril, tem aspectos da vida de um homem que uma mulher não entende, só contempla”), terminando por romantizar a figura do boiadeiro.
Lohmann, ao lado de Glenda Nicácio, é das raras diretoras que voltaram a realizar longas-metragens: Todas as Manhãs do Mundo (2017), com Lawrence Wahba; e Slam: Voz de Levante (2018), com Roberta Estrela D’Alva.
3 – Sabrina Rosa
Vamos Fazer um Brinde (2011), de Cavi Borges e Sabrina Rosa, acompanha um grupo de amigas nas últimas horas para a virada de ano.
Sara (Roberta Santiago), proprietária da cobertura onde a história se passa, namorava Laura (Keruse Bongiolo), única personagem branca da trama. O relacionamento se desfez traumaticamente anos atrás magoando Sara. Laura é levada de surpresa por Vera (Juliana Alves) para alegria de todas e abalo de Sara. A certa altura, Cristina (Sabrina Rosa), ex de Laura, aparece inconformada por ter sido abandonada.
Heloísa (Roberta Rodrigues) é atriz. Quando chega ao apartamento de Sara narra um teste fracassado por ela não suprir os anseios do diretor: a produção é sobre uma ex-presidiária e ele quer uma pessoa que realmente tenha sido detida – uma fantasia idealista de que isso irá emprestar maior veracidade ao papel. Se assim o é, questiona-se: para que, afinal, a profissão de atriz? Lucas, o ex-namorado, que mora em um apartamento no mesmo edifício, liga pedindo sua presença. Todas avaliam como um relacionamento abusivo. Ele a espanca e Heloísa retorna à cobertura alegando que pode ter provocado a situação e por isso não quer denunciá-lo, afirma que vai abandoná-lo e reconquistar o amor próprio.
Susana (Cíntia Rosa) está grávida de sua primeira criança, uma menina, Bruna. Extremamente insegura, a todo momento liga escondida de seu celular para o marido Bruno, e tem acesso a todas as suas redes sociais. Ela revela ter medo de colocar uma criança “neste mundo cheio de problemas”, de não saber educar corretamente, da possibilidade de ter a promoção comprometida, da dúvida se Bruno vai deixá-la por ter ficado gorda. Em uma das ligações, ao não conseguir falar com ele, deixa recado acusando-o de traição, ofendendo-o, expulsando-o de sua vida, descrevendo o corpo perfeito de uma amante imaginária, e afirmando que vai criar a filha sozinha. Em novo contato, a situação se esclarece, a ligação havia caído, Bruno não batera o telefone em sua cara. Assim, ela pede desculpas pelo exagero e promete mudar.
Vera (Juliana Alves) está de TPM, com uma fome avassaladora e apaixonada. Chateia-se com a ida da mãe, Dona Irene (Ana Miranda), para a confraternização, pois se sente tolhida. Incomoda-se com comentários que julga indiscretos feitos pela mãe. Seu grande dilema é responder se aceita ou não se casar com Alex, com quem iniciou recentemente um relacionamento. Por telefone, ela topa o pedido após ouvir conselhos das amigas e da mãe sobre liberdade individual feminina, alegria de constituir família, e respeitar a vontade do coração.
Dinho (Fabrício Santiago) queria ser Paquita – ao que Susana recorda-o que ele não era branco, loira nem menina – e lembra de sonhos eróticos com Paquitos. Quando mais novos, Vera tinha atração por Dinho, e ele lhe agradece pelo apoio no momento em que de fato entendeu sua orientação sexual. No episódio do espancamento de Heloísa, vai defendê-la e fica furioso com o machismo e a homofobia de Lucas.
Como descrevi em outro ensaio para a revista (Vagabundos e Malandros nas Comédias Brasileiras de Maior Bilheteria: 1995-2020): “Todas as personagens fazem parte de uma classe trabalhadora ativa representada por profissionais liberais em carreiras absolutamente estáveis e satisfatórias. Em nenhum momento debate-se sobre incertezas ou ambições em negócios, emprego ou carreira. (…) Desta feita, sobra um gigantesco espaço para confusões e reconciliações afetivas, amorosas e sexuais em chave conservadora e moralista – os verdadeiros motes das produções. Ao final dos filmes, abundam abraços fraternos e cenas de casamento. E vida que segue em confortável regozijo. Dentro e fora da tela, no último caso, ao menos como utopia”.
O único momento em que uma personagem reclama factualmente da instabilidade profissional é quando Heloísa narra o teste fracassado. Ainda que a queixa possa ser legítima, ao que parece, ela faz parte de uma mentira para esconder que estava no apartamento de Lucas.
4 – Carmen Luz
Não tive acesso a Um Filme de Dança (2013).
5 – Mariana Campos
Hotel da Loucura: Gênese (2014), de Mariana Campos e Raquel Beatriz, acompanha a instalação do Hotel da Loucura, as atividades dos participantes do 2º Congresso Universidade Popular de Arte e Ciência – UPAC, também chamado de Ocupa Nise, no Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio de Janeiro.
Há vários depoimentos de artistas, cientistas, médicos, pesquisadores e usuários. Mesmo incorporando diversas vozes e performances artísticas (algumas à propósito da câmera), a narrativa é guiada por falas poéticas de Vitor Pordeus, diretor-fundador do Hotel. Aliás, apenas nestes momentos o filme arrisca-se na produção de imagens igualmente “poéticas”.
O congresso debate sobre a vida para além dos sintomas dos usuários; a necessidade de repensar as formas de relação com o sofrimento psíquico através das atividades artístico-culturais; a transformação de um local de dor e sofrimento, de tratamento desumano em um local de acolhimento, em espaço de convívio e aprendizado mútuos; as inumeráveis formas de ser e de existir; o capitalismo, o consumismo e o desprezo pelo outro; o mal de um como mal de todos, como mal público.
Também se discute o imperativo da organização política para que tudo que estava sendo construído prevalecesse na política pública e impulsionasse mudanças de como concebemos e vivenciamos a medicina e a sociedade.
6 – Roberta Estrela D’Alva
Slam: Voz de Levante (2018), de Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann, é um documentário que observa tanto a promoção do slam por Estrela D’Alva no Brasil quanto seu circuito mundial.
O próprio filme se coloca no cumprimento deste objetivo ao mostrar, logo em seu início, do que se trata o slam e suas regras para participantes e público.
Ficamos conhecendo uma rede internacional de campeonatos, dos quais o Brasil também faz parte. Testemunhamos encontros de pessoas, nacionalidades, culturas, línguas, raças, gêneros, idades. A obra é muito generosa ao retratar todo uma geração de poetas, suas vozes, corpos e performances que, invariavelmente, tem em comum a exploração e a opressão.
O título do filme sugere algo que não entrega, a voz de levante. Não se vê qualquer construção organizativa para além da realização dos slams (a luta dos oprimidos reverberada em poesias) assim como não se assiste as mobilizações necessárias para os slams acontecerem.
Por outro lado, o filme impressiona ao explorar as contradições do slam. As competições ao passo que dão vazão a poemas de reconhecida contribuição artística para o avanço do slam também incentivam a concorrência e o individualismo. Desta forma, poesia e performance transformam-se em instrumentos para satisfação imediata do público e do júri através de efeitos fáceis, óbvios ou sabidamente impactantes, chocantes ou empáticos, reduzindo-os a função exclusiva de vencer as competições.
Assim surge, por exemplo, a questão do slam de poema-palanque, forma muito disseminada e aceita por tratar de temas urgentes e profundos da sociedade, mas que oblitera ou acanha outros assuntos que podem ser considerados frívolos, menores. Mais uma preocupação é a do tema se sobrepor à própria construção poética, fazendo com que jurados se constranjam frente a assuntos de grande comoção, porém transmitidos sem qualquer criatividade.
Outro momento de interesse é o encontro de Estrela D’Alva com os pioneiros do slam, nos EUA: suas visões nem sempre convergentes sobre origens, valores, caminhos e descaminhos e a relação com a face mais comercial do hip hop.
7 – Nathalia Sarro
Kizomba, 30 Anos de um Grito Negro na Sapucaí (2018), é um documentário do Departamento Cultural da Unidos de Vila Isabel, o Vila Cultural, realizado em celebração ao primeiro título da escola de samba no grupo especial em 1988.
Entre imagens do bairro, particularmente do morro, e muitos e deliciosos “causos” do samba e do subúrbio carioca, o filme apresenta figuras-chave e a emoção daquele desfile. Estavam envolvidos temas como o centenário da abolição, a denúncia do apartheid sul-africano, a liberdade para Nelson Mandela, as lutas contra a ditadura empresarial-militar e pela democracia no Brasil. Ruça, presidenta da escola à época, sintetiza: “Nossa luta foi política, nossa arma era a cultura”.
É destacado o papel de Martinho da Vila como organizador das relações entre a cidade do Rio de Janeiro e diversos países africanos, sua participação no Movimento Negro na promoção de eventos sobre países africanos a partir 1982. Os depoimentos relatam como os diversos núcleos e frentes do Movimento Negro (com suas diferentes acepções sobre e como deveria ser encarada a abolição formal e os seus 100 anos) se uniram em prol do samba-enredo, inclusive, com militantes de vários segmentos e de outras escolas desfilando em conjunto.
O painel com João Cândido, Martin Luther King, Samora Machel, Malcom X, Amílcar Cabral, Winnie Mandela e Agostinho Neto utilizado no desfile expressa o caráter de radicalidade mais amplamente disseminado e defendido pelo movimento negro naquele momento.
Composto por Rodolpho de Souza, Luiz Carlos da Vila e Jonas Rodrigues, este último recorda da deliberação sobre a letra de Kizomba se centrar na luta negra pela liberdade e não mencionar o ato institucional da Princesa Isabel. Neste sentido, uma decisão acertadíssima do filme é dar a conhecer os caminhos que não foram percorridos quando convida compositores dos sambas não selecionados para cantarem suas versões ao tema revelando outros imaginários poéticos e políticos.
Um dos maiores méritos do filme é apresentar, a todo momento, a movimentação do bairro de Vila Isabel, contribuindo para a noção de como lutas e samba-enredo eram, de fato, expressões daquela comunidade. A relação afetiva de vários membros permanece até hoje, por exemplo, guardando suas fantasias. Em seu momento final, o filme reconstitui o desfile passo a passo através da memória destas pessoas.
8 – Camila de Moraes
O Caso do Homem Errado (2018) narra o trágico caso de racismo que vitimou Júlio Cesar. Em 1987, dois assaltantes invadem um mercado e fazem irmãos reféns. No momento de desfecho do caso, Júlio Cesar, que estava junto à multidão assistindo ao que estava acontecendo, tem uma crise epiléptica e é levado pela Polícia Militar junto com um dos assaltantes baleado. No caminho para o hospital Júlio é executado pelos policiais.
São escutadas vozes da justiça, da imprensa, da família, de entidades civis, e intelectuais. Conforme o documentário, a execução de Júlio não gerou repercussão imediata por conta do pensamento reacionário “bandido bom, bandido morto”. A mobilização do movimento negro, pressionando e provendo a imprensa de informações possibilitou a reverberação pública do caso. Foi necessário desmentir seguidamente as versões da PM, que inclusive plantou uma arma. Todo conflito inserido em um momento histórico complicado, pois o recém-terminado período militar ainda tinha influência.
O Estado, apelando para a representatividade liberal e conservadora, destacou um capitão negro comprometido com as forças repressoras para presidir o inquérito policial-militar no intuito de passar a falsa impressão de isenção. Já nos bastidores, a PM tentou fazer com que um oficial de academia brilhante assumisse o crime para encobrir quem de fato havia dado a ordem do tiro, um sujeito que já havia passado por ações policiais desastrosas. A decisão final veio de uma sessão secreta do tribunal militar.
Um dos maiores méritos do filme é extrapolar o estudo de caso e ampliar o debate para a questão do destino reservado ao perfil do homem jovem negro pobre em um país racista como o Brasil. Assim, o filme debate para além das fronteiras gaúchas e questiona as expectativas, os efeitos e os impasses da redemocratização: a dicotomia homem errado (matar quem trabalha) e homem certo (quem não trabalha como potencial criminoso) que normaliza o abuso policial; os autos de resistência; o papel da polícia (em abstrato); o mito da democracia racial; o pobre como marginal e o negro pobre como criminoso; o embate entre a consciência de classe e a ideologia do estado; o genocídio da juventude negra; o encarceramento em massa; a seletividade penal racial.
Um procedimento interessante utilizado pela cineasta é o de ir até as ruas verificar a memória popular sobre o ocorrido. Contudo, ele é pouco acionado e, talvez, pudesse colaborar na ponte entre presente e passado recente do país que o filme tece tão bem.
9 – Glenda Nicácio
Café com Canela (2018), de Ary Rosa Duarte e Glenda Nicácio, retrata um momento da vida de alguns personagens que vivem em uma pequena cidade do interior baiano. O filme começa com imagens bucólicas, detalhes simples da cidade, cantos.
Alternam-se diferentes temporalidades. No presente, um grupo de amigos, a maior parte vizinhos entre si, festejam e celebram a amizade e a vida: Violeta (Aline Brunne), Marcos (Guilherme Silva) e filhos; Margarida (Valdinéia Soriano); Cidão (Arlete Dias) e Ivan (Babu Santana), que recentemente perde o companheiro Adolfo (Antônio Fábio), único personagem branco. No passado, a reprodução de imagens de câmeras VHS onde Margarida e Paulo (Aldri Anunciação) comemoram o aniversário do filho Paulinho, com diversos convidados, dentre eles a ainda pequena Violeta, de quem Margarida era professora. Os dois momentos voltam a permear a narrativa vez por outra.
O desenrolar do filme são os dias que antecedem o encontro no presente. Violeta é casada com o pedreiro Marcos, e vende coxinha. Ambos cuidam e tem muito carinho pela avó dela, Roquelina (Dona Dalva Damiana de Freitas), já acamada e sem autonomia. Margarida vive reclusa e atormentada pelo falecimento do filho anos atrás. Vaga pela casa lembrando através de fotos e sons a infância de Paulinho, do tempo com Paulo (de quem recebe mantimentos) antes da separação. Ivan, médico, e Adolfo, ex dono de agência de viagem, vivem harmonicamente, até a súbita morte do segundo. Todos os relacionamentos são idealmente perfeitos. Exceto o de Cidão com seu falecido, por quem era espancada.
Após anos sem se ver, Violeta reencontra Margarida e resolve ajudá-la, uma forma de agradecer o que fez por ela quando seus pais morreram.
Um filme sinestésico, de enorme desenvoltura cinematográfica, com as personagens sempre experimentando, saboreando, muitos toques, carinhos e afagos. De grande sensibilidade, trata sobre cuidar de nós, dos nossos, dos sentimentos, mas também ilude ao centrar todas as dimensões da vida no universo afetivo.
Como indiquei mais acima, Nicácio, ao lado de Tatiana Lohmann, é das raras diretoras que voltaram a realizar longas-metragens no período em análise: Ilha (2018), Até o Fim (2020) e Voltei! (2020), todos com Ary Rosa Duarte.
10 – Gabriela Barreto
Memórias Afro-Atlânticas (2019) é um documentário apresentado por Xavier Vatin que, em 2012, fez pós-doutorado na Universidade de Indiana, nos EUA. O local possui um dos maiores acervos do mundo em etnomusicologia de música tradicional. Lá, encontrou o do linguista Lorenzo Dow Turner (1890-1972), homem negro, neto de escravizados.
Uma das gravações de Turner foi de Mãe Menininha de Gantois, em 1940, em uma cantiga pra Oxossi, em Ketu. Mãe Carmen, filha de Mãe Menininha, é chamada para relembrar da gravação, e Monica Millet, a neta, da importância histórica e cultural. Assim segue, com outros descendentes e legatários solicitados a cantar e comentar as canções, resgatando histórias de antepassados, terreiros, e, assim, parte da história das religiões de matriz africana no Brasil.
Imagens atuais evidenciam os esforços de continuidade dos diversos grupos, enfrentando o distanciamento das novas gerações, a perda dos significados do que é dito, restando apenas o som do que é cantado. Contudo, a resposta que se organiza é um discurso abstrato de que o Brasil não valoriza sua história, seu patrimônio.
11 – Joyce Prado
Chico Rei entre Nós (2020) é um documentário que, ao invés de investigar a existência ou não de Chico Rei (o escravizado que haveria comprado a própria liberdade e de outros como ele) centra-se em como a “ideia Chico Rei” permanece em diversos desdobramentos ao longo da história e contemporaneamente.
Em seu início, o filme apresenta a personagem e a possibilidade de ter existido uma ou mais pessoas que cumpriram o papel de proteger e libertar os povos africanos sequestrados, assim como relata a escassez de documentação e a força da oralidade. Também destaca como o ouro mineiro foi explorado pela Europa dando condições à revolução industrial, resultado da expertise dos povos africanos nos conhecimentos de mineração.
Em seguida, a narrativa destaca a Igreja de Santa Efigênia – erguida em atendimento a pedido seu em sonho de Chico Rei. Na cidade, cada igreja abrigava um grupo social: branco rico, branco pobre, mestiços e pretos. A Igreja de Santa Efigênia era a única igreja que os negros podiam ir e se localizava na periferia, onde ficavam os pobres, libertos e escravizados. Em São Paulo, em passado recente, a gentrificação expulsa a população negra das áreas centrais, ainda assim permanecendo uma Igreja de Santa Efigênia no hoje notório bairro oriental da Liberdade. Um entrevistado ressalta planos de combate à invisibilização com o resgate da memória africana do local em matriz institucional-culturalista.
Diferentemente é a Ocupação Chico Rei, em Minas Gerais. Mais uma vez a especulação imobiliária nas áreas centrais entra em ação e, assim, famílias são obrigadas a morar em encostas, em áreas de risco. A recusa em correr este perigo organiza as pessoas para a luta pela terra, a luta pela moradia, com a consciência da divisão entre capital e trabalho, da necessidade da luta de classes e da superação do capitalismo.
Ao final, a congada (atribuída a Chico Rei) permanece na comunidade ainda hoje, com o encontro na Igreja de Santa Efigênia e a passagem pela cidade.
12 – Juliana Vicente
Cidade Correria (2020), de forma bastante criativa, reconta a constituição e a fundação do Coletivo Bonobando em uma dupla chave, tanto por entrevistas com seus participantes quanto pelo acompanhamento do processo de construção colaborativa do primeiro espetáculo do grupo, que rememora e reelabora criticamente a trajetória de vida do elenco e a própria concepção do que é encenado.
Na cena de abertura, um brevíssimo trecho ficcional do filme protagonizada pelo coletivo. A chegada de um barco a costa brasileira, uma narração que recupera a violência colonial que permanece. A cidade correria é o enfrentamento, é a resistência, correr para não morrer.
Os depoimentos dos membros, arguidos como jovens negros favelados, sobre suas atividades e expectativas com a entrada no campo artístico confundem-se e mesclam-se com o espetáculo. O processo seletivo e os ensaios alternam-se com a peça que fala sobre o processo criativo de encenar a própria peça a partir das experiências vividas pelos atores, entrelaçando-se a todo momento questões intra e extra espetáculo. É deste fundamento que se organiza o filme.
Tendo a circulação como mote e a cidade como palco, desenvolvem-se variadas relações sobre o cotidiano de pessoas negras em um país racista, os aparatos de vigilância e violência, a precarização de segmentos sociais, os atores como trabalhadores da cultura, as restrições impostas pela mobilidade urbana (falta de recursos, escassez de percursos), os espaços onde determinados fazeres artísticos (não) são estimulados a se desenvolver e para onde (não) são incentivados a se deslocar.
13 – Éthel Oliveira
Sementes: Mulheres Pretas no Poder (2020), de Éthel Oliveira e Júlia Mariano, acompanha a vida de seis mulheres negras candidatas a parlamentares no período da corrida eleitoral de 2018, ação detonada a partir do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, mulher de origem proletária, favelada, negra, lésbica, lutadora contra todas as formas de exploração e opressão.
Organiza-se, portanto, como uma das respostas ao bárbaro crime político, a ocupação de cadeiras na política institucional a partir da ideia de mais mulheres pretas em espaços de poder. Desta forma, Mônica Francisco, Tainá de Paula, Talíria Petrone, Renata Souza, Rose Cipriano e Jaqueline de Jesus são apresentadas em unidade, representantes de um mesmo grupo social (raça+gênero+classe) e de um mesmo legado (Marielle Franco).
Adversidades, dificuldades e esforços em comum também colaboram para a construção de unidade: a criação da figura pública eleitoral de cada uma delas; as questões do trabalho voluntário da militância; o racismo nos espaços “nobres” da cidade; a não sororidade eleitoral; o parco financiamento das campanhas pelos partidos; as incontáveis reuniões, encontros e comícios, além dos grandes momentos de mobilização, como na Marcha de Mulher Preta e na Parada de Orgulho LGBTI. E, da mesma forma, a campanha do #EleNão, e a resistência frente a investida reacionária e de orientação fascista nas redes.
Urnas apuradas, algumas das candidatas são eleitas, e um incredulidade generalizada diante da derrota para a presidência e da ascensão de figuras reacionárias nos diversos parlamentos. Buscam-se explicações e prevalece o entendimento que a mobilização vai para além da eleição. Os últimos momentos do filme apresentam as tomadas de posse, a entrada nos gabinetes, as primeiras atividades parlamentares, e a modificação do cotidiano.
A legenda final comenta o histórico aumento nacional de candidatas negras naquela eleição. As personagens são ligadas a diferentes grupos de interesse, fato que o filme não omite, mas que também não aprofunda. Da mesma forma, não explora o fato de que estão ligadas a diferentes partidos, portanto, a diferentes projetos políticos, ainda que todos possam ser localizados em um vasto campo que pode ser definido genericamente como democrático ou progressista. Por fim, não problematiza uma reinvindicação conservadora do brado “mulheres pretas no poder”, como se categorias sociológicas em comum (raça+gênero) determinassem alinhamentos automáticos para além do aspecto político (permanecer ou não no atual modo de produção e reprodução da vida).