O Brasil é uma obra de ficção.
As marcas sociais, econômicas e culturais do colonialismo não se dissolveram no tempo-espaço apesar das dezenas de guerras e revoluções de resistência dos povos subalternizados e violentados pelo processo de dominação e genocídio implementado pelas elites europeias desde o século XV. Os processos de independência das colônias em relação aos países que as controlavam fizeram surgir nações que ostentam, em suas narrativas de formação, verdadeiras ficções. Além dos mitos fundadores e falsos heróis que os discursos nacionalistas se empenham em sustentar, o contexto pós-colonial desafia a compreensão dos processos políticos e sociais e faz a realidade muitas vezes se aproximar da ficção.
As dezenas de obras de arte que se valem de leituras contraditórias da realidade para enunciar uma confusão entre a realidade e a ficção são uma característica de um discurso que se pretende disruptivo ao evidenciar aspectos tão deslocados da realidade que se confundiriam com uma criação literária, um devaneio criativo. Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós traça essa linha no chão de sua narrativa, e dá um passo sobre seus próprios limites, fabulando uma poderosa ficção científica, com viagem no tempo-espaço e outras quimeras, ao documentar uma realidade inacreditável, construída pelas práticas de violência racistas típicas das sociedades pós-coloniais.
Seus personagens, pessoas reais representando suas próprias personas, narram em um tempo-espaço ficcional, a experiência concreta de ter vivido um ataque armado de policiais contra jovens que curtiam um baile na periferia de uma cidade satélite no Distrito Federal brasileiro. A Ceilândia, consequência urbana do processo construtivo de Brasília, projeto político e urbanístico de capital planejada que também flerta com as fronteiras entre o que é real e o que é ficcional, é o cenário de eventos reais que vão se distorcendo em uma alegoria tempo-espacial, dando dimensão dos absurdos que o racismo produz, mas também das possibilidades de criação crítica que a ficção pode proporcionar ao vislumbrar revides, restituições, a partir do deslocamento da realidade.
Os personagens Marquim do Tropa, Claudio Irineu Shokito, Dimas Cravalanças, Dj Jamaica, todos homens pretos, conduzem uma narrativa na qual a violência policial atravessa as existências de jovens periféricos, marcando seus corpos e memórias. Cada um a seu modo revisita as lembranças do massacre sofrido no baile do quarentão, na região administrativa da Ceilândia, em 5 de março de 1986, quando a polícia interrompeu o evento e separou brancos e negros, antes de atirar contra os presentes. As mutilações e sequelas deixadas em seus corpos, rivalizam com a revolta que na mesma medida em que os imobiliza, potencializa o desejo de vingança de Marquim.
Há pelo menos três temporalidades estabelecidas na narrativa: um presente, ainda que datado no futuro em relação ao ano de produção do filme, onde se situam Marquim, DJ Jamaica e Shokito, que além de ambientar fisicamente a Ceilândia contemporânea, seu aspecto precário e popular, dimensionam os corpos dos personagens, envelhecidos, mutilados e vivendo a aridez da realidade de um bairro de periferia brasileiro; um passado, da Ceilândia do final do século XX, revisitado por fotografias, depoimentos e lembranças gravadas na rádio independente que Marquim comanda em sua casa, onde surgem as memórias do baile do quarenta, da sociabilidade da juventude periférica nos anos 1980 marcada por repressões, e do fatídico evento em que policiais atiraram em garotos negros no baile; e há também, uma temporalidade futurística que se move entre datas dentro da máquina do tempo na qual Dimas Cravalanças viaja, buscando interferir nos acontecimentos localizados em diferentes momentos do passado, que lhe permitam colher provas para restituir a justiça racial num futuro distópico em que milícias religiosas e fascistas de brancos controlam o poder político.
O trânsito entre essas temporalidades, equacionado tanto pelo deslocamento no espaço-tempo de Dimas, quanto pelas narrativas radiofônicas de Marquim, contextualizam a fabulação da narrativa, esfumaçam os sentidos entre o que é real e o que é ficcional, sem nunca relativizar o sentido radical da violência racial. O discurso do filme evidencia a cada linha da fábula e da constatação documental, que o racismo é um fato social incrustrado na cultura e perpetrado pelo Estado e pelas elites que formam essa nação, ontem, hoje e em qualquer amanhã possível.
Como o próprio diretor do filme enuncia em entrevistas que concedeu, há contradições na constituição do discurso, que, no entanto, não invalidam o sentido da crítica política que se pretende. O filme aborda a problemática racial no Brasil, tanto pela perspectiva de enunciar os diversos racismos (estruturais, institucionais, culturais…) realizados por indivíduos e instituições brancas contra o povo preto, quanto pela perspectiva afirmativa, na potente resistência criativa, na luta incessante por justiça racial, na afirmação da cultura popular internacional dos povos afrodescendentes. Esse posicionamento se dá à revelia do fato de que Adirley é um homem branco.
A identidade racial do autor não elimina a possibilidade de realizar um cinema no qual o protagonismo é negro, com um discurso racializado que evidencia seu posicionamento junto aos sujeitos negros, com uma equipe constituída por indivíduos afrodescendentes, ainda que o projeto de um sujeito branco localizado na periferia urbana de um território no qual a questão racial relaciona-se diretamente com a desigualdade social. O que nos parece potente no posicionamento do discurso do filme Branco Sai, Preto Fica, é que Adirley não busca falar por, tampouco emular uma localização falseada de seu discurso como um sujeito branco narrando uma história de pretos, o dispositivo assumido, na fronteira entre o documentário e a ficção, abre espaço para a voz dos sujeitos reais, articulados por uma fabulação construída como um sentido crítico, como uma voz distanciada que comenta a realidade enunciada pelos sujeitos.
Nesse sentido, o recurso narrativo do discurso radiofônico de Marquim do Tropa, é interessante, já que serve como uma voz narrativa do filme, conduzida pelo sujeito histórico que está em questão no discurso fílmico. Assim como nas peças radiofônicas de Bertolt Brecht, o mecanismo da rádio serve para captar a realidade, enunciar a memória e crítica à realidade narrada, espaço para atravessamentos como citações, trilhas sonoras que contrapõem o tom do texto, e que humanizam o personagem em suas contradições entre sujeito real e personagem ficcional.
O plano de vingança de Marquim, construído musicalmente junto ao Dj Jamaica ao longo de toda a narrativa, e que pretende produzir um efeito destrutivo ao cerne do poder que oprime a comunidade de Ceilândia, é um artifício na estrutura do filme, para levar a frente a série de memórias, frustrações e desejos de revide, que perpassam o pensamento do protagonista. A ação contra a ordem repressora, desestabiliza os planos do herói Dimas Cravalanças, que vem do futuro para reconstruir os acontecimentos, e cria uma fissura na possibilidade de restituir a justiça às vítimas da violência racial.
A alegoria técnico científica, apoiada em viagens no tempo-espaço, ancoradas nas imagens de corpos-máquina, acoplados em próteses e veículos precários para superar a imobilidade gerada pela violência da polícia contra corpos pretos, funciona como uma crítica melancólica, uma distopia sobre a insuficiência das restituições históricas. Aponta para ação subversiva, uma espécie de vingança político-cultural, como resposta cabível do sujeito alijado de sua humanidade pela necropolítica do Estado.
O posicionamento a partir da sensibilidade e da crítica estabelecem o discurso racializado do filme, assumindo um ponto de vista de combate: revisar os acontecimentos, evidenciar o racismo policial e estatal, compor uma crítica estética à realidade brasileira contemporânea. Branco Sai, Preto Fica transita entre temporalidade e realidades possíveis, nas quais a luta antirracista se faz presente e urgente.