Pigarro
Pensar o Cinema Negro é um desafio por conta de suas previsíveis e imprevisíveis determinações. Seja pelo seu aspecto de estrutura de produção – direção e assunto negro – por sua relação aposicional de quem olha e quem é olhado pela direção e atuação, por seus processos de resistência, de suas questões formais e discursivas que podem se alinhar de uma maneira dócil, revoltada, cooptada, cooptante, estranha, dialética, etc… Sobretudo acerca de um fazer negro e o que quer que isso seja, dentro do cinema.
A tentativa de colocar o Cinema Negro numa esfera de valor moral, em uma categoria determinada, é um processo que pode desencadear uma limitação estética e ética desse cinema como um sujeito restrito. Ou seja, o paradoxo da determinabilidade da sujeição da identidade recai na discussão do Cinema Negro como um campo, pode categorizá-lo como um Sujeito fixo. Sujeito que é circundado por seus limites impostos por tal determinação de identidade, oriundas de um processo simultaneamente interno e externo das subjetividades individuais e coletivas do que seria esse “Negro”. Ao trazer o Cinema Negro na chave da indeterminabilidade (das indeterminações), a relação de sujeição limitante a este campo, como um sujeito restrito (fixo), se dissolve, dando espaço a um devir negro que se relaciona nos limites contra e a favor de tais categorias. A implosão se dá por tensionamentos dentro do campo, em um movimento transgressivo que o mobiliza sem cair em determinismos de identidade.
Não falo aqui num sentido metafísico de transgressão subjetiva, mas num sentido simultaneamente estrutural do negro na sociedade capitalista, onde a raça e etnicidade se ligam profundamente à classe. Ao mesmo tempo, a discussão pode habitar o micro, por especificidades subjetivas e relacionais – indivíduo e relação coletiva -, onde tais identidades podem ser transgredidas de formas ambíguas por suas contradições particulares que envolvem ser Negro no mundo. Dito isso, “Ilha” (2018), longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio, age como um cuspe atirado para o alto sobre um representar a si através de estéticas negras ligadas dentro e fora do Cinema Negro brasileiro contemporâneo.
Tosse
O longa começa com os primeiros momentos do sequestro de Henrique, cineasta negro consagrado por seus pares, por Emerson, jovem negro traficante de drogas que deseja realizar um filme sobre seu amadurecimento, desde a infância até a vida adulta e seu trauma paternal. Emerson realiza o sequestro para que Henrique co-dirija esse filme, numa espécie de troca que se dá entre a devolução do tesão da prática fílmica para Henrique com a aproximação deles e o pagamento pelo serviço. Essa proposta de co-direção se dá, segundo Emerson, pelo amor, pela dor ou pelo cansaço, e são nesses modos que o filme é construído.
A premissa se desenvolve pelo processo de feitura desse filme e pela aproximação desses personagens, que são acompanhados por Thacle, amigo de Emerson e silencioso fotógrafo desse filme, majoritariamente “found footage“. Por conta desse dispositivo, Thacle é operador de câmera dos dois filmes, tanto do “Ilha” quanto do interno da narrativa. Assim, o filme já indica sua narrativa em abismo, sua metalinguagem.
O longa pode ser visto, analisado e discutido como um grande arquipélago cheio de diversas ilhas/ilhotas. Uma dessas ilhas a ser discutida será sobre o tensionamento dos mundos ali dispostos e a relação de representação e performance que o filme traz. “Ilha” se coloca como uma narrativa em abismo (Mise en abyme) sobre o processo precário de feitura fílmica, sua relação racial que habita simultaneamente um pulsar de vida e de morte. “O Olhar da morte é que nem o olhar do gozo”, essa fala de Henrique, no seu relato/desabafo sobre o assasinato que cometeu contra o jovem que se apaixonou, parece habitar o filme a todo momento. Dentro dessa narrativa, os processos de subjetivação racializada dialogam através de um embate entre uma ingenuidade arrogante de fazer filme de Emerson com o modo estabilizado e apático dessa feitura por Henrique, criado pelo modo industrial.
Emerson constantemente provoca Henrique sobre a falta de tesão de seu olhar, sobre a beleza do antinaturalismo, da sujeira e do erro, ao mesmo tempo em que é confrontado por sua ingenuidade e desnecessária criação de uma encenação através de violências reais, de uma afetação cênica criada a força e talvez apelativa. Esses embates produzem um terceiro espaço, oriundo dessa relação dialética, no filme que se desenvolve na relação deles. O desabafo e conforto. A implicância e agressão que desemboca num sexo rápido e intenso e de alguma forma preserva a intimidade pela câmera que mostra apenas os pés e posteriormente o afago. E, posteriormente a morte, o resgate de uma subjetividade abandonada, o fantasma e novamente o abraço.
Esse conflito, realizado majoritariamente por Emerson, tenta despossuir a relação de sujeito homogeneizado em que Henrique se encontrou por causa de condições encapsuladoras e “maduras” do mercado cinematográfico situado no âmago do capitalismo. Henrique mesmo desabafa sobre a saudade de um maior intervalo entre as filmagens dos planos e de uma maior intimidade no modo de produção. É nesse processo de realização fílmica e na relação que os personagens constroem, que o filme de Ary e Glenda decide apontar para uma divisão de registros de atuação como possibilidade transgressora e eventualmente híbrida. A hibridez é percebida com as possíveis dissonâncias que a interação do modo de interpretação dos protagonistas interage com o mundo visto em “Ilha”. O primeiro registro, o de Emerson e Henrique é o mais próximo de um naturalismo, pois mesmo que tenha suas idiossincrasias de encenação, ainda performam um espaço da sua contemporaneidade de realização como cinema brasileiro.
O outro é o da chave de atuação caricatural, explicitamente atuada que é vista na interpretação dos atores que estão sendo escalados para fazer o papel de pai e mãe de Emerson. Este registro anti-naturalista e impróprio, é valorizado por Emerson ao ser interditado por Henrique ao cortar o primeiro take filmado por eles. A interrupção de Henrique é feita por achar a interpretação “um pouco tosca” e é retrucado por Emerson que diz: “É Linda né”. Essa cena de explicitação da divergência estética abre um espaço para uma dualidade do Negro como um bom escravo/mau cidadão. A disputa contra a convenção da performance de atuação de algo que se aproxima a um realismo natural abre um espaço não de pura “mal criação”, mas de reflexão dessa normalidade inventada, como uma perturbação contra-hegemônica. Além dessa divisão, que cria uma dinâmica de tensão entre as performances e a separação da ficção interna e a realidade do filme — o universo de Emerson e Henrique, dentro deste mundo construído por Ary e Glenda — , há duas interseções que operam de maneiras opostas. A relação de mistura entre os protagonistas com os figurantes e personagens terciários e a interação de Henrique e uma personagem mística, denominada Brasil.
Cuspe
É nessa intervenção entre os mundos representados pelas variadas encenações que o filme parece tensionar qualquer modulação de subjetividade. Essas interseções operam de modo que os não atores se aproximem de uma interpretação naturalista como figurantes, assim como os protagonistas, criando esse lugar comum e interseccional. Por estarem num registro de atuação próximo, a mise-en-scène é convergente de forma que essas relações se aproximam, ainda que de forma variada por suas particularidades.
Em um dado momento, a existência de Emerson, Henrique e Tacle parece não ter efeito neste mundo, como na cena de tortura, em que Tacle, a longa distância, filma Emerson torturando Henrique para convencê-lo a fazer parte do filme, enquanto oito pessoas sentadas na areia trabalham e ignoram o crime cometido ali. De forma praticamente oposta, na cena em que Emerson interage com um dono de bar e com seus clientes, tocando um violão, a relação que se estabelece entre eles é catártica e precede a uma catarse individual de Henrique, que canta “Clube da Esquina nº 2”, acompanhado pelo violão de Henrique. Esses dois momentos, situados no início e final do segundo ato do filme, também indicam o afastamento e aproximação que os coloca em consonância e diálogo com aquele território.
Por outro lado, nessa mesma cena, temos outra chave de atuação que, de maneira mais oblíqua, tensiona essa relação de mundo ficcional e real, criada pelos personagens no filme. Essa personagem é a andarilha “exuística” que se nomeia Brasil. Há uma representação performática como a de uma pomba gira que, com suas risadas, olhares e passos tortos, faz com que a interação de Henrique seja menos iluminista, de certa forma, ao trazer uma opacidade em sua fala. Por mais que o texto seja codificável e relacionável à nossa história como brasileiros, para Henrique, a estranhabilidade permanece pela opacidade do “Outro”.
Queda
Ilha parece ser um daqueles filmes simultaneamente sintomas de seu tempo e uma quebra de si mesmo. A tentativa de movimentar a sua subjetividade, fazendo com que o mundo a engula a sua subjetividade a seco, produz uma quebra no espelho e na janela. Conforme a identidade é contrastada a si mesma pelo outro, a compreensão se desenvolve nesta ruptura. O cuspe dado à sua representação limitante recai sobre a sua própria cabeça. O filme força em Henrique a sua relação com o fantasma, como um jeito de se reconciliar com o irreconciliável e compreender a necessidade da falta e da indeterminação na formação do sujeito ao mesmo tempo que o habilita a encontrar uma subjetividade sua escondida. Aceitar o indomável é uma forma de constituir identidades abertas ao diálogo, não na perspectiva de uma liberdade irrestrita, mas pela abertura de uma castração de identidade que é imprescindível na perspectiva neoliberal de mercantilização das identidades. É favorável a fácil assimilação representacional para uma maior transformação dos sujeitos em objetos, commodities e propagadores de si mesmos como objeto. Assim, na medida em que Ary e Glenda lidam com diferentes chaves e encontros de performances, o valor ideal de qualquer identidade fixa se dissolve profundamente em qualquer restrição que o Cinema Negro possa cair como marca. No final das contas, Ilha é um Cinema Negro Desobediente que também habita os espaços de convivência. Ilha é um escarro informe que desintegra a forma dentro dela de maneira a não se encerrar em si. É um devir, é um gerúndio.