Matheus Strelow
Atravessando o Túnel Novo desembocamos na Avenida Princesa Isabel, uma via larga e caótica que simbolicamente divide o Leme de Copacabana. Através do fluxo intenso dos carros, sob as marquises dos prédios altos espremidos entre si, os inferninhos já fornecem evidências de uma Copacabana para além do mito secular de cartão postal. No sentido da praia, imediatamente paralela à direita está a avenida Prado Júnior. Composta de três quarteirões, esta rua é aparentemente mais calma, cotidiana, mas os segredos mais singelos de uma mitologia do bairro mais filmado do Brasil. Se a Princesa Isabel é via de passagem, cacofônica, a Prado Júnior é via estacionária, onde tudo pode acontecer mas também onde as coisas ficam. Não sou carioca. Moro no Rio, mas nunca morei em Copacabana; porém ao longo dos 100 minutos de Fulaninha (1986) sinto que fui nascido e criado ali na Prado Júnior, em outra época, e numa tarde de dia de semana peguei uma matinê estrelando Isabelle Adjani no finado Cinema 1 (hoje um mercado Hortifruti) para depois beber nos botecos com as figuras excêntricas que avizinhavam o apartamento de David Neves. A Prado Júnior de hoje em dia não carrega o mesmo brilho solar dos anos 1980. A farmácia do Leme ainda está ali na esquina da Viveiros, mas os botequins deram lugar a versões mais aburguesadas. Ainda assim sente-se o cheiro da vida, ouvem-se os mesmos gritos da boemia, uma certa mística se preserva.
Não muito já foi escrito sobre Fulaninha, mas o que foi dito parece suficiente – afinal trata-se de um filme muito frontal e transparente com suas intenções: esta é uma comédia de costumes caracterizada pela despretensão, uma crônica cotidiana interessada no calor das ruas, do papo jogado fora no universo cotidiano de seus personagens. E por despretensão não quero dizer falta de cuidado, muito pelo contrário. Esta despretensão reside no estar aberto ao real, ao espontâneo, à vida. Abdicar do cálculo e favorecer o que não se planeja. Não é qualquer um que consegue alcançar esse domínio da forma, porque filmar com tamanha despretensão exige o dobro da maestria dos estetas pretensiosos.
Pelo olhar de David Neves, Fulaninha resulta num retrato cristalino de Brasil urbano cuja força reside justamente no gesto de sintetizar a encenação num pequeno microcosmo vivo. Um filme de “morar dentro” que nos convida a perambular por uma única rua, observar o movimento e do alto de um certo conforto pequeno-burguês conviver com gente malandra e irreverente. Considerando tudo isso repito algo que também é muito atribuído a Fulaninha: sua raridade em relação à produção brasileira de outrora. Há de se questionar por que um filme como esse não fez escola; por que o cinema brasileiro não ambiciona a despretensão?
Longe de sugerir que nossa cinematografia não tenha produzido crônicas similares, claro. A figura do malandro brasileiro sempre esteve presente na ficção e a comédia em si é o gênero de excelência da história de nosso cinema, inegavelmente atravessando a barreira da formação de público e constituindo uma identidade audiovisual nacional. O que diferencia Fulaninha não é necessariamente de natureza temática. Os vastos prédios de apartamentos minúsculos e kitnets que populam a verdadeira Copacabana atravessam o cinema brasileiro, seja em proto-pornochanchadas como Ainda agarro esta vizinha (Pedro Carlos Rovai, 1974) ou em retratos definidores da demografia do bairro como o antológico Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002).
Fulaninha é o segundo produto de uma trilogia de comédias sobre a Zona Sul carioca dirigidas por David Neves, as outras sendo Muito Prazer (1979), comumente considerada sua obra-prima, e Jardim de Alah (1988), seu último filme. Talvez este texto seja meramente uma ode a sua poética, mas destaco Fulaninha primeiramente por ser meu preferido, e logo depois pelo motivo porque me move com mais paixão: David Neves filma seus espaços com esmero e simplicidade, fazendo de sua câmera um instrumento de cartografia. Parte do fascínio com a vivacidade de seus personagens se dá por conseguirmos nos posicionar junto a eles em seu pequeno universo, entender o que os constitui ao reconhecemo-nos neles. Nesta trilogia David Neves retrata pessoas erráticas e cômicas sem nunca deixar de nutrir uma paixão por elas. Em Fulaninha este exercício formal alcança seu ápice.
Numa entrevista a Alex Viany datada da época do desenvolvimento do roteiro, David Neves comentava: “É uma coisa muito simples; quatro homens que bebem num botequim. [A Fulaninha] passa religiosamente por ali e eles prestam atenção nela, e ela neles. São as quatro versões deles sobre ela e a versão dela, a verdadeira, sobre eles e sobre si mesma.” O filme resultante é mais conciso, estabelecendo o protagonismo em Bruno (Claudio Marzo), um cineasta cujo processo criativo de seu próximo projeto é engatilhado pela obsessão com a imagem inatingível da titular adolescente, apelidada de Fulaninha (Mariana de Moraes). Bruno é claramente um avatar do próprio David Neves, o que torna o gesto de observar junto dele e seus amigos ainda mais íntimo, vivido. Ele mesmo morava na esquina da Ministro Viveiros de Castro com a Prado Júnior, filma com conhecimento de cada poro dos asfaltos.
As versões de seus amigos sobre a Fulaninha são representadas por curtas inserções ilustrativas de suas teorias, sejam de fascínio ou depreciação misógina. O filme foge brevemente de seu registro naturalista para demarcar que é Bruno o narrador principal. Não nos enganemos, Fulaninha ainda reflete o machismo estrutural característico de sua época. Este talvez seja o filme de ficção mais masculino de David Neves, que desde seu sensível Memória de Helena (1969) à cinebiografia de Luz del Fuego (1982) se dedicava a personagens femininas e a histórias pequenas e intimistas – ao contrário da maioria de seus colegas de geração do Cinema Novo, adeptos do totalizante.
O caráter voyeurista de Bruno em relação à menina, porém, é sempre reforçado como não sexual, não romântico. Não há como comparar Fulaninha com o romance entre Reginaldo Faria e a adolescente Flávia Monteiro em A menina do lado (Alberto Salvá, 1987), por exemplo. Bruno a deseja como atriz de seu próximo filme. O grande imbróglio de sua trama são justamente os desencontros que atrasam a descoberta de que Fulaninha é filha de sua nova namorada Rose (Kátia D’Angelo). E fazendo jus à filmografia de David Neves, Fulaninha tem sua vida própria, suas ambições, sua própria irreverência e rebeldia. Vive sua libertação sexual namorando o surfistinha Marcos Palmeira, não quer saber de dedicação à escola e toma os primeiros passos na tentativa de ser artista de tevê. Não nutre versões sobre os homens que a observam porque está ocupada demais com seu próprio pequeno universo.
Os amigos carismáticos ao redor de Bruno fornecem o teor cômico mais acentuado do filme, cada um seguindo um modelo estereotípico reconhecível a esse tipo de crônica. Jardel (José de Abreu) se aproveita das riquezas da esposa que nunca fez gozar, vivendo em pé de guerra com ela até que se reconciliem. Canela (Roberto Bonfim) é o fotógrafo pornográfico, o único da trupe que realmente é visto trabalhando – este tipo foi repetido em versão mais sanitizada por Gilberto Braga em Vale tudo (1988) com o Olavo de Paulo Reis, também com um estúdio em Copacabana, e muito provavelmente na mesma Prado Júnior. Sua secretária, Sulamita (Zaira Zambelli), participa das mesas de bar e ajuda a investigar informações sobre a Fulaninha, mas eventualmente é agredida por Canela na cena que culmina num monólogo estrondoso, no qual traz à tona as verdades sobre cada um dos homens. Por último, Hermínio (Flávio São Thiago) aguarda com temor o resultado de um processo que pode fazê-lo perder a herança de seu tio e ser obrigado a trabalhar. Este talvez seja o personagem mais fascinante em sua revelação sobre uma fauna da Zona Sul, e um dos que hoje mais pode se conectar com os desejos e anseios do espectador contemporâneo.
Isso me lembra a icônica frase dita por Otávio Augusto a Cecil Thiré numa cena de fim de expediente em Muito prazer, abrindo o convite para uma cerveja: “São quatro horas da tarde de uma quarta-feira, semana praticamente encerrada!” Existe uma conta no Twitter que reproduz em vídeo essa mesma frase todas as quartas-feiras no mesmo horário, um meme irreverente atrelado a nossa histórica insistência em questionar a natureza do trabalho em detrimento da vida plena. Semanalmente nos comentários aparece alguém perguntando de que filme é essa cena, nutrindo o interesse dos desavisados pela obra de David Neves, e por um cinema tão encarecido desses personagens. Muito prazer, porém, não está disponível em plataformas de streaming ou mesmo no Youtube. Fulaninha está lá, contabilizando 63 mil visualizações em 1 ano. Um corte do monólogo de Canela acumula 168 mil. Há, portanto, um interesse contemporâneo nestes filmes.
Ao mesmo tempo, e retomando meu questionamento inicial, a herança da poética de David Neves nos foi negada como a herança do tio de Hermínio. O cinema brasileiro é obrigado a trabalhar quando um modelo de cinema tão despretensioso – mas também mais desafiador, exigente de talento – está disponível para servir de inspiração. Isso se estende ao próprio gênero da comédia, hoje mais do que nunca demarcado como imediato oponente da produção séria dos circuitos de arte. A sensação é que a única possibilidade do humor no cinema brasileiro esteja nas superproduções escandalosas da Globo Filmes estreladas pelos humoristas televisivos, e mais recentemente da internet. Não que estas sejam produções menores a se desconsiderar, mas há um meio termo a ser explorado, um registro dramático que exista entre o grito e o falar baixinho para impor seriedade. Queria presenciar outras Fulaninhas e Fulaninhos, sentar nos botecos com gente dissidente, rir junto das piadas de mulheres héteros, lésbicas e trans, de homens gays e trans, pretos, indígenas e amarelos. Ver gente viva, fazendo e falando merda, sem precisar discutir sua própria existência.
Em entrevista para O pasquim no lançamento do filme, David Neves fala: “A participação de toda a equipe e sobretudo dos atores foi fator importantíssimo para certa homogeneidade que o filme guardou. Bebe-se muito em Fulaninha. Há, portanto, pelo menos uma leitura suplementar do filme, que poderíamos chamar de etílica.” A embriaguez não é apenas ferramenta dramática, mas modo de produção. Fulaninha transparece tão vivo pela maestria de David Neves, mas também por uma atmosfera boêmia em comum, de todo mundo se entregar em sintonia por saber muito bem em que filme estão.
Há uma piada excelente na primeira metade de Fulaninha que talvez sintetize o que existe a se ensinar para um cinema contemporâneo brasileiro. A trupe está toda reunida no boteco esperando a Fulaninha passar para que finalmente todos tenham um primeiro vislumbre dessa figura elusiva. Quando ela finalmente aparece, dois carregadores tampam o campo de visão da mesa com um espelho enorme. De repente esses homens são forçados a olhar para si. Esbravejam e reclamam como se assistissem um gol contra num jogo de futebol. Será que esses homens podem representar uma parcela de cineastas contemporâneos, obstinados em olhar e fantasiar totalizações para o outro? Fulaninha nos ensina a beleza do olhar para si, do prestar atenção nos pequenos momentos da vida em que o total se constitui.