João Luiz Vieira
* Artigo originalmente publicado na Revista Filme Cultura de Maio de 1983
Em 1954, o filme Nem Sansão nem Dalila, dirigido por Carlos Manga, parodiava a superprodução Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille, lançada alguns anos antes. No filme de Manga, podemos encontrar o que talvez seja a melhor metáfora da paródia no cinema brasileiro. Ao contrário do original americano, onde a força de Sansão/Victor Mature encontrava-se no seu próprio cabelo, no filme brasileiro, essa mesma força era encontrada na peruca usada por Sansão/Oscarito. Em outras palavras, o filme brasileiro, enquanto paródia, está para a superprodução de Hollywood assim como a peruca de Oscarito está para o cabelo natural do ator americano. Comparando-se as duas situações, vemos que a força do cabelo verdadeiro, artificializada num acessório, a peruca, é uma metáfora para a força de um sistema desenvolvido de produção cinematográfica originado nos mecanismos internos de uma poderosa economia, em oposição à força simulada de um cinema imitativo. A peruca, além disso, também caracteriza um aspecto formal da fantasia, elemento orgânico da linguagem carnavalesca que, por sua vez, define os limites da paródia no cinema brasileiro.
A palavra paródia nos remete imediatamente para um objeto que existe anterior a ela e que se torna a razão de sua própria existência. Do objeto artístico original, seja ele uma peça teatral, musical, um romance, ou um filme, até o novo objeto, ocorre um processo de transformação no qual a paródia procura imitar o original de forma cômica. Ela é uma imitação que geralmente dá a impressão de algo grosseiro, de segunda mão, apresentando elementos de humor, nonsense e de ridículo. Como uma das formas de sátira, a paródia se coloca numa posição sempre crítica do próprio discurso ao qual ela se dirige. Entretanto, no caso do cinema brasileiro, a paródia se transforma numa sátira de si mesmo, criticando o próprio cinema brasileiro. Aqui, a intenção dos resíduos de sucesso do modelo original do que a crítica ao seu discurso.
A existência da paródia como manifestação artística está vinculada diretamente à função do riso, conforme investigada no excelente estudo de Mikhail Bakhtin Rabelais and his world. Segundo ele, o riso, como expressão, possui um significado profundo e é uma das formas essenciais de verdade em relação ao conhecimento do mundo, da história e do homem:
“é um ponto de vista particular relativo ao mundo. O mundo é visto de uma forma nova, não menos (e talvez mais) profundamente do que quando visto de um ponto de vista sério. O riso é tão pertinente à boa literatura, na colocação de problemas universais, quanto à seriedade. Certos aspectos essenciais do mundo são acessíveis apenas através do riso”.
Analisando principalmente alguns ritos populares do Renascimento, Bakhtin apontou, com muita clareza é melhor do que ninguém, a importância que os espetáculos cômicos, assim como as festividades carnavalescas, desempenharam para o homem na antiguidade, onde a característica dominante de tais manifestações era a diferença de outras formas feudais, políticas, oficiais e eclesiásticas, encontradas nas cerimônias da estrutura social. Tais manifestações criaram um mundo novo, uma alternativa para o “modus vivendi” oficial, da qual participava, por exemplo, o povo medieval durante uma certa época do ano. Nos primórdios do desenvolvimento cultural, cultos sérios e cômicos coexistiam num único sistema de rituais primitivos. Ambos eram igualmente sacramentados e oficiais. Posteriormente, as manifestações cômicas foram transferidas para um nível não oficial, ou seja, para o nível anti estrutural da organização social. Permaneceram na oficialidade os rituais que enfatizavam a ordem social tais como as procissões religiosas e os desfiles cívicos que se caracterizam por um reforço de valores que confirmam a estabilidade e a não-transformação, os aspectos tradicionais e estratificados da sociedade, tais como a hierarquia e a religião, os valores morais e políticos e, finalmente, normas e proibições. Bakhtin afirma que estes rituais dão ênfase ao triunfo de uma verdade preestabelecida e predominante, imposta como eterna e indiscutível. É esta mesma verdade que explica, por exemplo, as razões para o tom monoliticamente sério das comemorações oficiais e o porquê de o riso estar sempre ausente delas. Tal não acontece no carnaval, quando há uma suspensão temporária dos níveis hierárquicos estruturadores da sociedade, permitindo o aparecimento de um tipo de comunicação especial e incomum na vida do dia-a-dia. Esta comunicação cria uma fórmula extremamente dinâmica e simbólica, caracterizada por uma lógica toda especial que a da inversão de status, posições e significados. É dentro deste raciocínio que, no Brasil, Roberto da Matta vem também fornecendo as melhores análises antropológicas para o carnaval do Rio de Janeiro. Segundo ele, as inversões estruturais durante época carnavalesca fazem aflorar alguns pontos críticos do funcionamento da estrutura, como, por exemplo, o fato de que os negros ao se vestirem de nobres, reis e rainhas, significa uma representação diametralmente oposta à de suas vidas nos outros meses do ano. É essa linguagem do carnaval que alimentou a produção da maior parte das chanchadas no cinema brasileiro, e é dentro desse universo que a paródia assume uma significação bastante particular.
De imediato, a paródia no cinema brasileiro surge como uma forte indicação da relação de poder existente na luta pelo mercado cinematográfico apontando diretamente para a força dominante neste mercado que é a do filme estrangeiro, notadamente de procedência norte-americana. O simples fato de que a paródia, no cinema brasileiro, é dirigida basicamente para o filme americano já é um dado revelador de sua penetração em nossa cultura cinematográfica. Esta influência aparece, a nível econômico, através do domínio do mercado cinematográfico e reflete-se na produção cultural pelo maior ou menor grau de colonização do público que produz e que consome cinema entre nós. Entretanto, o fato da paródia geralmente significar a situação de dominação econômica e cultural não quer dizer que ela explicite uma crítica consciente, nem tampouco a denúncia de sua dependência. Pelo contrário, como observou Paulo Emílio, mesmo em exemplos mais recentes, o que existe é uma situação na qual se critica o próprio cinema brasileiro através, principalmente, de sua enorme incapacidade de copiar, dentro dos padrões sonhados pelos produtores, diretores e público, a poderosa eficiência tecnológica exibida em filmes como Tubarão ou a nova versão de King-Kong.
No cinema brasileiro, a paródia exibe uma multiplicidade de formas. Há uma profusão de paródias voltadas para conhecidas personalidades do meio cinematográfico como a imitação que Oscarito fez de Elvis Presley no filme De Vento em Pôpa (1957), onde o cantor americano passou a se chamar “Melvis Prestes”, ou sua imitação de Rita Hayworth em Este Mundo é Um Pandeiro (1947). Norma Bengell marcou presença nos últimos anos da chanchada parodiando Brigitte Bardot no Homem do Sputnik (1959). Um outro exemplo dessa tendência é a síntese feita por Costinha de vários elementos presentes no Tarzan, seja através do cinema, como em Costinha, O Rei da Selva (1976), ou em inúmeros comerciais e programas de televisão durante uma época. Outras vezes a paródia é feita em cima de personagens históricos e/ou literários geralmente identificados com uma certa cultura de elite. É, por exemplo, o caso de Oscarito travestido de Helena de Tróia em Carnaval Atlântida (1953), ou a antológica representação de Romeu e Julieta feita também por ele e Grande Otelo no clássico de Watson Macedo Carnaval no Fogo (1949). São também os casos de filmes como Sherlock de Araque (1958), O Barbeiro que se Vira (1957), Uma Certa Lucrécia (1957), As Três Mulheres de Casanova (1968), dentre outros. Em alguns casos, a paródia associa-se ao filme original através de referências específicas, independente de uma relação mais íntima com a narrativa, como é o caso de citações a O Exorcista presentes no filme de Mazzaropi Jeca Contra o Capeta (1976). Em Assuntina das Amerikas (1976), Nelson Dantas pula numa poça d’água cantando e dançando como se fosse em Cantando na Chuva. Em algumas paródias, aproveita-se a ideia inicial de um filme de bastante sucesso para se criar, a partir de uma série de situações novas. Como exemplos, podem ser citados os filmes feitos para o público infanto-juvenil, geralmente lançados durante as férias escolares, dentro da série dos Trapalhões: Os Trapalhões no Planalto dos Macacos, com óbvias referências ao filme e série de televisão Planet of the apes; ou Os Trapalhões na Guerra dos Planetas, inspirado pelo enorme sucesso de Star Wars; ou ainda O Incrível Monstro Trapalhão (1981) que se originou também da série de televisão O Incrível Hulk. Vale a pena observar aqui a crescente influência da televisão na produção de paródias, mantendo também a mesma relação de dominação pelo filme americano encontrada no cinema. Tal é o caso de, além do Hulk, o filme O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contra as Panteras (1978). A série dos Trapalhões conta, como a base que garante o seu sucesso, com a extrema popularidade dos quatro comediantes consagrada na televisão. Entretanto, a principal estratégia destes filmes se encontra no deslocamento operado em cima de heróis e personagens famosos do universo clássico infanto-juvenil, sejam eles do cinema, da televisão ou da literatura, que são trazidos para situações bem mais próximas do espectador. Tal é a fórmula de filmes como Simbad, o Marujo Trapalhão (1976), O Trapalhão na Ilha do Tesouro (1975), Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1977), O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão (1977), Cinderelo Trapalhão (1980), etc. O público adulto, entretanto, também não ficou fora desta tendência recentemente através de uma versão pornô da história da Branca de Neve e os Sete Anões, conforme apresentada no filme Histórias que as Nossas Babás Não Contavam (1980).
Em alguns casos ocorre também a peculiaridade da referência ao título do filme original sem que encontremos em sua narrativa traços de paródia propriamente ditos. É o caso, por exemplo, do filme A Banana Mecânica (1973), produzido em cima da expectativa provocada pela possível interdição de A Laranja Mecânica no Brasil. A mesma estratégia se aplica a Emanuelle Tropical, cujo original só foi visto no Brasil muito tempo depois. Entretanto Emmanuelo, o belo (1978), além do título, foi interpretado por Sílvio Cristal, ele próprio uma paródia de Sylvia Kristel. Também recentemente, o filme Nos Tempos da Vaselina (1979), se referiu de maneira direta ao título da produção americana Grease (Nos Tempos da Brilhantina). O Filho do Chefão (1974) e Onanias, o Poderoso Machão (1974) não tem nada a ver com o épico em duas partes de Coppola, O Poderoso Chefão a não ser pela utilização do título. Também de 1974, Exorcismo Negro e O Exorcista de Mulheres refletem o impacto causado pelo filme O Exorcista, sem, necessariamente, se constituírem em paródias do filme americano. Também, no final dos anos 70, devido ao sucesso das discotecas, principalmente como apresentadas em Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever) aparecem dois filmes de temáticas semelhante: Vamos Cantar Disco Baby e Sábado Alucinante, este último muito parecido em sua história com outro filme americano sobre discotecas, chamado Até que enfim é sexta-feira. Trata-se, no fundo, de uma questão de marketing e de sobrevivência, que tenta capitalizar, para o similar nacional, um pouco da sombra do filme estrangeiro, passando para o público até como uma possibilidade de paródia.
Apesar de a maioria das paródias se voltar para o filme estrangeiro, há também os os casos de paródia dirigidas ao cinema e à cultura brasileiros, como, por exemplo, a imitação que Colé fez de Rodolfo Mayer de (Obrigado doutor), no filme de Moacyr Fenelon, Estou aí? (1949). Em é a Maior (1958), Sonia Mamede e Nadia Maria parodiavam duas das maiores estrelas da Rádio Nacional da época, Marlene e Emilinha Borba. E dois dos gêneros mais populares do cinema brasileiro, o filme de cangaceiro e a própria chanchada foram também parodiados em filmes como O Primo do Cangaceiro (1955) e Os Três Cangaceiros (1961), enquanto Cacá Diegues evoca em Quando o Carnaval Chegar (1972) o clima das comédias musicais da Atlântida. Rogério Sganzerla também não deixa de lado a chanchada na mistura de gêneros proposta por seu filme O Bandido da Luz Vermelha (1968) onde a própria chanchada explica a mistura que há no filme entre policial, western, science-fiction, etc. O mesmo acontece com alguns filmes de Julio Bressane, notadamente O Rei do Baralho (1973) onde, além da presença de Grande Otelo, há uma série de situações típicas da chanchada. Em tais filmes,, a chanchada, além do seu potencial próprio como catalisadora da paródia, entra nesses filmes como um dado cultural tipicamente brasileiro e que havia sido radicalmente rejeitado pelo Cinema Novo.
Gêneros específicos do cinema têm sido mais ou menos abordados através de paródias no cinema brasileiro. O filme de espionagem, devido ao sucesso espetacular de James Bond, recebeu resposta no filme 007 e Meio no Carnaval (1966), com Costinha e Chacrinha, e em A Espiã que Entrou em Fria, que além de referência ao título do livro e filme O Espião que Saiu do Frio tinha, no elenco, Carmem Verônica interpretando Jane Bond. O horror não apenas se tornou o tema preferido do cineasta José Mojica Marins, na série de filmes com o personagem do Zé do Caixão, como também já ofereceu exemplares que vão desde o filme de vampiro, como Um Sonho de Vampiros (1969), onde Ankito interpretava o vampiro Dr. Pan, até o filme de múmia, caso recente do excelente filme de Ivan Cardoso O Segredo da Múmia (1982). Durante uma época, devido ao sucesso alcançado pelos spaguetti-westerns (eles mesmos já constituídos de paródias dos westerns americanos), apareceram entre nós filmes como Uma Pistola para Djeca (1970), D’gajão Mata Para Vingar (1971), Rogo a Deus e Mando Bala (1972), Um Pistoleiro Chamado Caviúna (1972), que exibia na trilha sonora canções da dupla Crioulo e Seresteiro misturadas com música de Ennio Moricone. O filme de Karatê também possui um similar nacional, Kung-Fu Contra as Bonecas, dirigido por Adriano Stuart em 1976, paródia aos filmes que apresentam lutas marciais chinesas, mas que mistura cangaceiros com orientais, estes aplicando golpes baixos nos brasileiros.
Uma outra forma de paródia, a que justamente mais me interessa, é a que segue bem de perto a estrutura narrativa do original, além de exibir todas as características das outras formas já citadas. São exemplos “clássicos” de filmes como, nos anos 1950, no apogeu da chanchada, Nem Sansão Nem Dalila e Matar ou Correr, ambos de 1954 e igualmente dirigidos por Carlos Manga, ou, mais recentemente, num confronto direto com filmes de grande sucesso, sustentados por um forte aparato tecnológico de efeitos especiais, como Tubarão e a no versão de King-Kong, os casos respectivos de Bacalhau (1976) e de Costinha e o King-Mong (1977). Também nesta categoria aparec,eu em 1978 uma paródia de Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigida por Mozael Silveira, intitulada Seu Florindo e Suas Duas Mulheres. É interessante notar que, a nível de alguns produtores nacionais, a relação de poder estabelecida entre Dona Flor no cinema brasileiro seria semelhante à de outros filmes de sucesso estrangeiros.
Historicamente é difícil determinar com precisão quando se manifestou pela primeira vez no cinema brasileiro essa tendência à paródia, ainda que, segundo Vicente de Paula Araújo em A Bela Época do Cinema Brasileiro, filmes como “uma versão mais alegre” de A Viúva Alegre, exibido em 1909, possam provavelmente ser incluídos nessa categoria. Segundo o autor, as adaptações nacionais de óperas famosas efetuadas em alguns dos “filmes-cantantes” eram geralmente adaptações livres de maiores compromissos com os originais. Tal ligação com o teatro pode também indicar que esse impulso paródico não foi privilégio do cinema e que já existia no século XIX na área do vaudeville, como demonstram algumas peças de Artur Azevedo voltadas para a ridicularização do teatro francês dominante na época. Entretanto, já na época do cinema falado, registra Alex Viany em Introdução ao Cinema Brasileiro, que Lulu de Barros dirigiu um trio de comediantes formado por Genésio Arruda, Tom Bill e Vincenzo Gaiaffa no filme O Babão (1931), que parodiava o grande sucesso do ator Ramon Novarro em The Pagan, produção americana de 1929. Genésio Arruda, o protótipo do caipira mais tarde cristalizado por Mazzaropi, aparecia de cuecas e, com sotaque, cantava a sua versão de Pagan Love Song:
Neste bananar,
terra tropicar
um amor babão
vem ao coração
Cópias desses primeiros exemplares de paródia infelizmente já não existem e apenas o que sobrou pode ser estudado textualmente. Esta tendência paródica iria encontrar seus momentos de glória no Rio de Janeiro, alimentada pelo espírito essencialmente carnavalesco das chanchadas da Atlântida, evidenciada já no filme Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle, e aprimorada por Carlos Manga dois anos mais tarde em Matar ou Correr, paródia do filme de Fred Zinneman Matar ou Morrer (Hign Noon) e em Nem Sansão Nem Dalila.
Como observamos antes, a linguagem do carnaval, aliada à função do riso, é um código cultural dominante que anima e dinamiza a sátira das chanchadas. Entretanto, as relações estabelecidas entre Carnaval/Chanchada/Paródia precisam ser investigadas em maior profundidade. Em seu ensaio Carnaval Como Um Rito de Passagem, Roberto da Matta conclui que o sistema de inversões operado durante o Carnaval cria uma série de situações sociais novas nas quais criticam-se certos aspectos da estrutura social e onde se permite perceber melhor as diferenças existentes nessa estrutura. A paródia dos filmes americanos nos três exemplos citados acima, bem como nos mais diferentes momentos paródicos encontrados na maioria dos filmes brasileiros produzidos entre os anos 30 e o início dos anos 60, é geralmente identificada pelo público e a crítica como filmes carnavalescos. Na verdade, um número considerável de chanchadas da Atlântida foi feito para divulgar as canções carnavalescas inseridas arbitrariamente na narrativa dos filmes. Embora não ocorram canções em Matar ou Correr ou em Nem Sansão Nem Dalila, a classificação da chanchada, por definição, os insere no universo maior do carnaval o que permite encontrar traços da dinâmica de inversões próprias do carnaval que indicam também a existência de aspectos críticos do funcionamento da estrutura social. É como se a crítica efetuada nas chanchadas só fosse apenas permitida dentro dos limites circunscritos pelo universo carnavalesco. Há nesses filmes críticas e observações frequentes sobre a vida política e administrativa no Rio de Janeiro, a Capital Federal da época, como, por exemplo, a falta de luz elétrica e de água em muitos bairros da cidade, o aumento no preço de gêneros alimentícios, os políticos com sua retórica populista, cheia de promessas que não são nunca cumpridas, a mudança da capital para Brasília, diferenças de classe, burocracia e burocratas, a situação do negro na sociedade brasileira, etc.
O público entendia e identificava-se com esta linguagem. Como um subgênero da chanchada, a paródia está imersa no universo carnavalesco, que sempre permitiu críticas dirigidas à estrutura social.
Conforme observou Jean-Claude Bernardet, Nem Sansão Nem Dalila é um dos melhores exemplos de filmes declaradamente políticos no Brasil ao mostrar, com clareza, as manobras de um golpe populista bem como a contra-reação. Usando vários pontos de contato com o original americano (principalmente nas sequências de “espetáculo” como as danças no palácio, festas, queda e destruição do templo no final), Carlos Manga elaborou uma paródia alegórica onde Sansão (Oscarito), devido à sua força, é nomeado governante do reino fictício de Gaza e, nessa posição, passa a ser constantemente vigiado como o alvo da ambição (pela sua força) demonstrada pelo poder instituído anteriormente composto pelo antigo rei e pelos líderes militar e religioso. Obviamente é o líder militar quem aspira ao poder total. Ingênuo e desavisado, Sansão não percebe as intenções do militar, claramente contrárias às medidas tomadas pelo herói no interesse do povo, como por exemplo, a criação da aposentadoria, a euforia desenvolvimentista no incentivo à produção de eletrodomésticos, a instituição de feriados todos os dias do ano com exceção do Dia do Trabalho (são inúmeras as referências paródicas à gestão de Getúlio Vargas), a diminuição do preço do pão e do farelo, enfim, medidas que desagradam diretamente os comerciantes. Estes queixam-se e a corte mostra-se insatisfeita, preparando-se para derrubar Sansão. Dalila, sob tortura, é compelida a descobrir onde reside a força de Sansão e enquanto Sansão dorme, acaba levando uma paulada na cabeça e perde a peruca para o chefe militar. Extremamente atual, pois os problemas de Gaza “são iguais aos de uma terra que conheço”, o filme discute ainda a relação entre os meios de comunicação e o poder, denuncia escândalos como a mistura de água no leite e o enfraquecimento da moeda local (o guinar) que deve, sob sugestão de Sansão, ser trocado por dólares imediatamente. Além disso, Nem Sansão Nem Dalila, aspira chegar ao poder um dia, derrubar o seu empregador, o Sr. Artur (que é o líder militar no sonho) e construir uma sociedade um pouco mais justa. Assim, o filme torna-se um bom exemplo do potencial da chanchada e consequentemente da paródia no tratamento de certos tópicos que, mais tarde, o Cinema Novo iria abordar de uma forma radicalmente diversa.
No mesmo ano em que realizou Nem Sansão Nem Dalila, Manga dirigiu uma outra paródia, Matar ou Correr, com Oscarito uma vez mais no papel principal, mas ao contrário daquele, o filme respeita muito mais a integridade do original, principalmente a nível da representação e como proposta estética. O personagem de Oscarito, numa oposição direta àquele interpretado por Gary Cooper, é um meio termo entre palhaço e covarde, sem as observações críticas que tornam Nem Sansão Nem Dalila um filme bastante atual no contexto de hoje. Matar ou Correr reafirma, de todas as maneiras, a superioridade do cinema americano pelo simples confronto entre o heroísmo épico do Western e a falta de jeito e covardia exibidos pela imitação brasileira. O confronto é explicitado com toda clareza no duelo final realizado na rua deserta de City Down, a sequência mantendo inclusive uma semelhança impressionante com a decupagem de High Noon, onde às batidas rítmicas do relógio que marca os minutos de suspense com a aproximação do meio-dia corresponde uma mudança de plano justapondo, em plano médio, os rostos dos principais protagonistas do drama. Aqui, como durante todo o filme, a paródia se limita aos personagens cômicos da narrativa, Oscarito e Otelo, pois enquanto os demais são mantidos a uma certa distância que respeita os demais são mantidos a uma certa distância que respeita sua integridade física e reproduz o tipo representado nos moldes conhecidos pelo público (o galã, a mocinha, os vilões, etc.), Oscarito e Otelo são colocados muito próximo da janela achatando o nariz contra o vidro, produzindo assim um efeito cômico. No duelo final, a música sublinha a paródia desenvolvida principalmente pela interpretação de Oscarito em confronto com a Lewgoy. O vilão é levado “a sério”, seu tipo, seu modo de caminhar e segurar a arma enquanto que o xerife Oscarito é lançado para fora, cai, levanta sacudindo a poeira, tropeça, hesita, sua arma não consegue sair do coldre, etc. A música nos planos em que se mostra Lewgoy é solene, de suspense, ao passo que, sobre essa música, nos planos em que vemos Oscarito, entram dois instrumentos que desenvolvem uma sutil linha melódica nitidamente de deboche. Desta forma há uma simetria perfeita entre o verdadeiro drama, autêntico e real, ou seja aquele desenvolvido pelo vilão e pelos demais personagens e a imitação, a paródia, falsa, grosseira e debochada presente nos elementos brasileiros colocados nessa narrativa, que é a dupla Oscarito e Grande Otelo. Dentro do próprio filme fica evidente essa divisão que mantém o respeito pela integridade daquilo que pode ser considerado como o verdadeiro cinema, o cinema “sério” onde a cópia é perfeita, como a reconstituição de uma cidade antiga do faroeste, feita em Jacarepaguá, a ambientação, os tipos, determinadas situações dramáticas “muito bem” resolvidas enquanto representação. “Excelente”, por exemplo, a associação que há na montagem entre o tropel dos cavalos da diligência e o corte para as pernas das dançarinas do saloon num movimento cancan, exemplo do desejo e do olhar cinematográfico de Manga em querer se aproximar o mais perfeitamente possível do cinema que ele considera bom.
A paródia demonstra, dessa forma, uma ambiguidade característica, atuando criticamente em relação a si mesma e demonstrando um profundo sentimento de autodesprezo. Ela critica e ridiculariza o próprio cinema brasileiro por não poder se igualar ao modelo americano, apesar do desejo de seus produtores. Sob este aspecto, a observação de Mario Chamie (citada por Jean-Claude Bernardet) de que o público brasileiro é levado a rir de si mesmo, me parece bastante apropriada. Numa atitude que reflete total colonização, sugere-se que a perfeição e o bom acabamento técnico são incompatíveis com o cinema brasileiro, o qual, por sua vez, evolui baseado apenas no deboche e na ironia carnavalesca. Após anos e anos de dominação do cinema estrangeiro no Brasil, o grande legado desse processo de colonização cultural foi que ambos, público e crítica, desenvolveram a mesma atitude em relação ao que deveria ser considerado como “verdadeiro” cinema, consenso este que sempre confundiu o veículo com uma determinada forma de trabalhá-lo, neste caso, o da continuidade ensinada pelo cinema clássico-narrativo americano. Para público e crítica fazer cinema significava, e significa ainda em muitos casos, proceder dentro dos parâmetros estabelecidos e impostos por Hollywood. Inúmeros exemplos dessa atitude são encontrados em críticas da época:
o que é realmente bom em Esse Mundo é um Pandeiro é a fotografia admirável de Edgar Brasil, nítida e bela pelo que há nela de artístico e o ângulo e efeitos de luz – e o som, claro, muito bem gravado de Jorge Coutinho, cousas em que nosso cinema se iguala ao americano, tendo avançado muito
O ideal, o sonho, era não apenas igualar o cinema americano, visto como o padrão máximo atingido por essa arte, mas, também como consequência, negar a capacidade de se realizar cinema brasileiro, como se o cinema não tivesse lugar na produção cultural do Brasil. Tal tipo de crítica reflete bem a situação de colonização cultural encontrada entre nós:
Oscarito é um cômico excêntrico e dele não se deve exigir outra coisa, tanto mais que o seu sucesso é enorme como tal – veja-se a interminável gargalhada que o público acompanha gostosamente, e o travesti paródia de Gilda, de Rita Hayworth, que é excelente! Temos lhe dito que se fosse para os Estados Unidos, lá fariam dele um Carlitos, mas Oscarito, modesto, não acredita.
Em outras palavras, se você tem talento para o cinema, não fique no Brasil. Vá para Hollywood, uma vez que lá é que a terra do cinema. Esta atitude subserviente está presente na chanchada e, como vimos, reflete-se igualmente em algumas paródias aos filmes americanos. Talvez nenhum outro filme tenha explicitado tais relações com tanta clareza como Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle, cuja narrativa centraliza-se exatamente na possibilidade de se realizar um filme épico, de grandes proporções, no Brasil. Carnaval Atlântida reconhece, uma vez mais, a impossibilidade de se copiar os padrões americanos de cinema e a intenção do diretor Cecílio B. De Milho (Renato Restier) de filmar o épico Helena de Tróia no Brasil é posta de lado em virtude do reconhecimento implícito de que o cinema nacional não é dado a temas sérios. Seriedade e honestidade no esquema proposto pelo filme, significam a impossibilidade de se filmar no Brasil superproduções com cenários luxuosos e muitos extras dentro dos padrões estabelecidos por Hollywood para esse gênero. Contrários às intenções do diretor estão os argumentos que favorecem uma adaptação “menos séria”, mais popular da história de Helena de Tróia, ou até mesmo a substituição daquele argumento por um outro, mais um filme carnavalesco, o que, no final, acaba mesmo acontecendo sob a condição exigida pelo diretor De Milho de que Helena de Tróia fosse filmada mais tarde, quando o cinema brasileiro contasse com melhores condições técnicas (fotografia a cores, som, bons atores, dinheiro) para dedicar-se a superproduções. Naquela época, tudo o que o cinema brasileiro podia fazer eram os filmes de carnaval. Com toda essa dificuldade, o subdesenvolvimento é assumido e Helena de Tróia reaparece sob forma carnavalesca. Como se, no Brasil, temas considerados sérios só tivessem lugar mesmo no carnaval. “Helena de Tróia não vai funcionar . O povo quer mesmo é dançar, sassaricar”, diz Regina (Eliana) ao pai, o diretor do filme, numa referência óbvia à seriedade do tema histórico, característico da imutabilidade do passado, de coisas antigas e mortas, próprias de uma elite intelectual e não do povo, segundo uma ótica bastante particular encontrada na maioria das chanchadas que, inevitavelmente, articulavam a oposição entre “popular” e “cultura de elite”. O presente e o passado são, em geral, identificados nesses filmes como pertencendo o primeiro à cultura popular e, o segundo, à cultura de elite. Nessa lógica explica-se a trajetória do Professor Xenofontes (Oscarito) que deixa o Colégio Atenas, onde lecionava a filosofia de Zenão, para cair nos braços do “Furacão de Cuba” (Maria Antonieta Pons), o estereótipo da mulher latina, sensual que perturba os homens. Do colégio, o professor aprende a rumba, cai no samba e no carnaval e se mete com o cinema. Depois de reconhecer o fato de que em sua passagem por Cuba ele estudou apenas os esqueletos e não as mulheres (identificadas com o presente), se dá conta do tempo que perdeu e, seduzido pelo “Furacão”, deixa de lado os gestos polidos e a linguagem erudita para descambar numa total avacalhação do personagem.
O confronto entre a representação típica da imagem do cinema brasileiro e a do cinema americano é explicitado na sequência em que De Milho mostra os cenários e explica suas ideias para a filmagem de Helena de Tróia. A produção parece toda muito pesada, enquanto que os gestos dos atores são excessivamente teatrais e artificiais. A cena mostra um jardim num palácio grego, construído precariamente em estúdio. Contrastando com a visão “elitista” do diretor, segue-se um plano subjetivo de dois representantes populares, contínuos do estúdio, típicos malandros cariocas, interpretados por Grande Otelo e Colé. Através dos olhares dos dois, passa-se imediatamente da cena “acadêmica” para o carnaval, e Blecaute entra fantasiado de grego, cantando a marchinha Dona Cegonha, sucesso do carnaval de 1953, enquanto que Grande Otelo, desajeitado, tropeça nas vestes largas e compridas que agora usa, dançando ao redor de Blecaute. Otelo provoca o riso em toda a sequência, reforçada pelo incrível deslocamento espacial, temporal e temático da canção em relação à narrativa do filme.
Poucas paródias recentes foram tão “seriamente” elaboradas quanto King-Mong e, principalmente, Bacalhau. Nesses dois filmes, é condição essencial o fato de que o espectador tenha assistido aos originais a fim de que os mecanismos da comédia possam atingir os objetivos desejados. É igualmente necessário que, nesse processo, o espectador compare continuamente a paródia com o seu modelo, ou melhor dizendo, a imitação, a mentira, com a verdade. E é exatamente neste sentido que ambos os filmes trabalham contra o cinema brasileiro, uma vez que a postura adotada por eles em relação aos originais é de visível inferioridade. Tal postura poderia ser crítica, realizando o sentido da paródia, ou seja a sátira frente a frente com o original. Desta forma haveria espaço para uma reflexão sobre as condições econômicas e culturais do cinema brasileiro que mostrasse, por exemplo, o poder de infiltração do cinema americano na formação do espectador. Como observou Jean-Claude Bernardet em crítica ao Bacalhau, a paródia deveria desenvolver estratégias que permitissem mostrar com maior clareza e ironia certos significados subentendidos que esses filmes sempre contêm. No caso de Tubarão, por exemplo, mostrando a vitoria da polícia aliada à ciência, sobre o povo, representado grotescamente pelo pescador Quint, ou a vitória do conhecimento científico e tecnológico, aliado ao aparato policial sobre o empirismo e a intuição do pescador. Em Bacalhau o que ocorre é exatamente o oposto. O filme segue de perto o desenvolvimento narrativo de Tubarão, mantendo apenas os aspectos superficiais e exteriores que despertam no espectador a lembrança do original. Logo no início do filme, após a sequência dos créditos, repete-se a sequência dos jovens reunidos na praia à noite, sob a luz de uma fogueira. Uma jovem se afasta do grupo e deixa seu namorado beijando a areia… o plano focalizando o rapaz que custa a perceber que está só e continua beijando a areia. Como o espectador já sabe de antemão o que vai acontecer com a garota e como o cinema brasileiro não tem a mesma tecnologia americana que permita filmagens submarinas, detalhes do primeiro ataque do bacalhau foram eliminados. No dia seguinte, um esqueleto branco e brilhante é encontrado na praia por um costureiro homssexual. A entrada deste personagem no filme, inexistente no original, tem a função de disfarçar e diluir os possíveis significados mais profundos que a paródia poderia desenvolver além de servir como elemento de identificação entre o espectador e o cinema brasileiro, uma vez que tal personagem homossexual é bastante encontrado na pornochanchada, devolvendo à platéia esteriótipos e situações típicas deste gênero mais recente em nossa produção cultural. Tal é o nível de transformações em relação ao original. A intenção principal é atingir uma identificação cultural a nível superficial, sem tentar ir um pouco mais longe como em algumas paródias da época da chanchada, sem tentar falar alguma coisa mais importante em termos de uma observação mais atenta a determinados aspectos de nossa realidade. Em Bacalhau, o oceanógrafo (Adriano Stuart) é português, ligeiramente estúpido, caçador de mulheres, que vive pescando mulatas na praia. O delegado de polícial (Hélio Souto) aparece de forma igualmente grotesca, vestido todo de azul, em bermudas, chapéu de cowboy e meias listradas, enquanto o pescador (Maurício do Valle) aparece também desengonçado, enrolado em linhas e anzóis. O prefeito (Dionísio Azevedo) passeia pelo vilarejo carregando nas costas cartazes de propaganda política. Desta forma, o ridículo das transformações serve de catalisador para o efeito cômico e consequentemente estabelece o grau de inferioridade do filme nacional na comparação que automaticamente é feita na memória do espectador. Nesta memória o filme reativa também um velho hábito e preconceito presente em muitos espectadores brasileiros, que adoram os filmes estrangeiros em detrimento dos brasileiros, reação hoje presenciada por qualquer um atento às exibições dos curtas-metragens brasileiros em sessões onde o longa é estrangeiro.
Carnaval Atlântida é um filme onde as relações existentes entre paródia, chanchada e carnaval tornam-se mais claras pois são apresentadas de tal forma que cada termo é absorvido e explicado dentro dos limites e domínios dos outros. Assim, aparódia surge como a única resposta subdesenvolvida possível de um cinema que, ao procurar imitar o cinema desenvolvido, acaba rindo de si próprio, dentro de um gênero específico, a chanchada, que por sua vez, está inserida no universo carnavalesco, de longa tradição cultural no Brasil.
O espírito carnavalesco da chanchada permitia que a paródia fosse feita com grande margem de independência em relação ao modelo original. Nem Sansão Nem Dalila e Matar ou Correr, além dos títulos, mantêm um estreito vínculo narrativo com os originais, embora tornem-se mais autônomos à medida em que os filmes avançam, pela introdução de personagens novos e de novas situações. O clímax narrativo dos originais é mantido nessas duas paródias, como é o caso da destruição do templo e do duelo final numa rua do faroeste. Entretanto, devido ao respeito já apontado pelo gênero western, Matar ou Correr consegue ser mais fiel ao original do que Nem Sansão Nem Dalila.
Num contexto mais recente, independente da tendência carnavalesca encontrada nas paródias da Atlântida, a situação em relação ao filme original é diferente: aqui exige-se que a memória comparativa do espectador seja solicitada constantemente de modo a satisfazer certas expectativas, diminuindo o grau de autonomia que a paródia possuía anteriormente. A toda hora o original é chamado à memória do espectador como um mediador da relação paródia/espectador, tornando a relação de dependência proporcionalmente maior. O resultado é extremamente negativo para o cinema brasileiro como demonstram filmes mais recentes como, por exemplo, Bacalhau e Costinha Contra o King-Mong. Deve-se salientar ainda que, nesse contexto recente, as paródias dirigem-se, uma vez mais, a filmes americanos de sucesso comprovado, caracterizados por uma parafernália poderosa com base em efeitos visuais especiais, o que parece assinar alguns diretores brasileiros que consideram o nosso cinema incapaz de reproduzir similares. A impressão que se tem é a de que certos filmes também de sucesso, porém mais próximos da realidade econômica do produtor brasileiro, não são tão sedutores quanto as poderosas demonstrações de tecnologia do ilusionismo. Não se fez, por exemplo, nenhuma paródia de Love Story.
A importância de Costinha e o King-Mong reside no fato de que, pela primeira vez, o cinema brasileiro conseguiu concretizar o ideal da paródia durante muitos anos: o lançamento simultâneo com o original. Este filme, aproveitando-se do aparato publicitário da superprodução de Dino de Laurentis, foi capaz de furar o bloqueio do cinema americano dirigindo-se a uma faixa de público para a qual o original era inacessível devido à proibição de até 14 anos. King-Mong se utiliza da popularidade de Costinha e do menino prodígio Ferrugem para compor uma imitação grosseira de King-Kong, onde, uma vez mais, o maior resultado alcançado é o riso à pobreza brasileira. Planos médios da mão do macaco revelam o plástico artificial que lembra um enorme sofá preto; as máscaras do rosto são rígidas, sem mobilidade e expressão; a miniatura do Cristo Redentor é mal feita, como a trucagem, permitindo ao espectador a percepção fácil de que o que se vê são painéis fotográficos. Tudo isso poderia perfeitamente existir dentro de uma outra intenção e objetivo. Ao invés de tentar imitar de forma pobre o ilusionismo técnico do cinema americano, filmes como o King-Mong ou o Bacalhau poderiam, através dos mecanismos próprios da paródia, denunciar esses mesmos instrumentos do ilusionismo revelando para o espectador as estruturas de manipulação que se escondem por trás do aparato tecnológico e, desta forma, talvez contribuir para o enriquecimento e desenvolvimento de um espectador mais inteligente e criativo. Infelizmente isso não acontece. Este tipo de paródia apenas faz com que o espectador glorifique ainda mais o cinema de Hollywood como o único, autêntico e legítimo cinema, reconhecendo a incapacidade brasileira para copiar “bem”. Tal tipo de paródia trabalha assim duplamente contra o cinema brasileiro. Por um lado reaviva um velho preconceito segundo o qual o filme brasileiro é ruim, e por outro, autoriza consequentemente uma certa prática dominante – a do filme clássico-narrativo americano, da superprodução, do filme de efeitos técnicos – como válida, legítima e autêntica, reconhecendo a eficiência de linguagem de um cinema opressor. Ao cinema brasileiro restaria apenas uma gargalhada à sua incompetência.
*Este artigo sintetiza algumas das ideias centrais desenvolvidas em tese de Doutoramento a ser apresentada ao Department of Cinema Studies da New York University. Uma versão mais explicativa, principalmente dos aspectos culturais da chanchada, foi publicada na antologia Brazilian Cinema, editada por Robert Stam e Randal Johnson, publicada em Nova York pela Farley Dickinson, 1982.