Igor Guimarães
Certamente entre os filmes brasileiros mais polêmicos de sempre, Xica da Silva (1976) está situado alguns anos depois de um momento que o cinema nacional, ainda que de forma embrionária, começava a discutir questões negras com um olhar menos superficial, vide os aclamados Barravento (1962) de Glauber Rocha, e Ganga Zumba (1963) do próprio Carlos Diegues. O impacto desse período era tão notável que durante a V Rassegna del Cine Latinoamericano (1965) celebrada em Génova, diversos cineastas e intelectuais do mundo debruçaram-se sobre a possibilidade da criação de um “ Cinema Negro”, muito por conta da impressão positiva tanto do trabalho audiovisual aplicado pelos cinemanovistas, como com as contribuições literárias, em especial o histórico texto de David Neves sobre a História da representação negra. A potência do Cinema Novo dos anos 60 expandiu o horizonte de alguns dos grandes realizadores africanos, como o próprio Ousmane Sembène que observara a efervescência daquele momento artístico brasileiro como uma possível rota narrativa, estética e representativa.
Entretanto, o que Glauber Rocha decretaria como o nascimento do “Filme Negro” com a obra Bahia de todos os Santos (1960) de Trigueirinho Neto, caminha numa outra direção, a partir do decreto do AI-5, a relação com a Embrafilmes se transforma, o olhar do governo sobre o trabalho dos realizadores passa a ser outro, o cinema muda, era necessário adaptar-se para sobreviver.
O êxito comercial do cinema nacional nos anos 70 é facilmente visível, algumas bilheterias daquele período só vieram ser superadas nestes últimos anos, a linguagem dos cinemanovistas mostram adaptações, casos de Como era gostoso o meu francês (1971) de Nelson Pereira dos Santos e Guerra Conjugal (1975) de Joaquim Pedro de Andrade. O mercado mostrava-se aficionado pela comédia, pelas grandes estrelas, ascendia a trupe dos Trapalhões, a pornochanchada tinha cada vez mais espaço, e no mesmo ano de estreia de Xica Da Silva, Mazaropi levava quase 3,5 milhões de pessoas para assistir um falso pai de santo charlatão em Jeca Macumbeiro (1975).
Cacá Diegues viveu na pele este processo. Em diversas entrevistas sobre essa mudança de década afirmara que para continuar produzindo um cinema que fosse de acordo com o seu tempo, que visasse uma indústria cinematográfica autossustentável, era necessário dialogar com o sistema, e estar sempre pendentes das possíveis brechas para expandir o aspecto criativo nos filmes, e especialmente esboçar formas de imprimir o seu senso crítico, ainda que entrelinhas. Depois de Os Herdeiros (1969), realizou dois longas com a politização não como essência, e sim como acessório narrativo, são eles: Quando o Carnaval Chegar (1972) e Joanna Francesa (1973), até finalmente chegar à comédia.
O realizador toma emprestado para seu roteiro a história de Chica da Silva, cria uma narrativa cômica, carnavalesca e alegórica de um Brasil monarquista, que permitia o debate sobre questões políticas contemporâneas de um Brasil ditatorial. A partir da comédia erotizada, busca levar o público ao riso diante do absurdo das situações narrativas, e ao mesmo tempo refletir sobre o seu lado verdadeiro no cotidiano.
É inegável que o filme consegue divertir o público, em especial destaque ao cómico Sargento-Mor (Rodolfo Arena) e seu filho (Stepan Necersian), as impagáveis caras e bocas do Intendente (Altair Lima) e sua esposa Hortência( Elke Maravilha), além da participação meteórica do Conde de Valadares (José Wilker), entretanto é na representação de Xica da Silva, magistralmente vivida por Zezé Motta, onde se encontra o epicentro cômico-narrativo, e é justamente neste ponto que vive/viverá a maior polêmica da carreira dos envolvidos, e uma das maiores de todo o nosso cinema.
Chica da Silva foi uma das mulheres mais importantes da História Colonial brasileira, filha de um homem branco e de uma mulher africana escravizada, nunca alforriada pelo seu pai, viveu de abusos e violências de todos os tipos. Comprada por João Fernandes Oliveira, tornou-se sua amante, conheceu as riquezas da corte, até ser alforriada pelo mesmo. Nunca casaram, mas sabe-se que Chica viveu na elite colonial, teve escravos, boa relação com a igreja católica, e quatro filhos com o Contratador de Diamantes.
A Xica de Diegues é uma mulher escravizada, consciente de sua posição social, dona de um óbvio desejo por ascensão, e entende que a única forma de conquistar suas ambições é através do seu corpo, de sua sensualidade, e de seu poder de manipulação. A personagem sempre usa uma máscara de uma suposta inocência nas suas palavras e em sua relação com o branco, mas por trás de cada uma de suas atitudes há uma intenção que parece não ser vista pelos outros, apenas por ela mesma e o público.
A recepção sobre a obra dividiu-se. Em contrapartida ao grande êxito comercial, a revista Opinião de novembro de 76 tem em sua capa Xica da Silva, e as perguntas em letras garrafais: Genial? Racista? Pornochanchada? Popular? Digno do Oscar? Dissertam sobre o caso diversos intelectuais, como por exemplo, o escritor Antonio Callado e antropólogo Roberto do Matta, mas fundamentalmente a historiadora Beatriz Nascimento. Diante da tão polêmica picardia da personagem vivida por Motta, Nascimento é cirúrgica quando afirma que Diegues escolheu a parte da história que lhe interessava, parece haver lido apenas o primeiro escrito sobre Chica da Silva pelo advogado Joaquim Felício dos Santos em 1868 que a colocava como perversa e usurpadora das riquezas de Diamantina, e não se permitiu uma análise crítica mais profunda do que poderia ser de fato a vida daquela mulher naquele ambiente, ou simplesmente como intitula o texto de Nascimento : A Senzala vista da Casa Grande.
Importante ressaltar que não pretendemos cair na tentação de espezinhar a obra de racista ou “passar pano”, pressupondo que a necessidade dos tempos de AI-5, obrigou-lhe a desenhar um personagem tão caricato e estereotipado. Essa classe de conclusão não é dever de um texto crítico. Podemos sim, por outro lado, afirmar que essa demanda estético-temporal somado ao conhecimento da historia afro-brasileira do autor abriu as portas para Xica, e não há problema em fazer um filme de comédia sobre um personagem negro, e nem muito menos deve-se exigir um rigor histórico, mas as escolhas argumentativas para construir o senso cômico são sim debatíveis.
Ainda que o reconhecido sentido crítico do cineasta seja facilmente percebido na rebeldia do personagem vivido por Stepan Necersian, ou na construção muito bem acertada de um reduto negro dentro da alta Sociedade Colonial, assim também como um White face contestatório da protagonista em pleno jantar na presença do Conde lisboeta , a comicidade está sempre em subverter o previsível e teatralizado contexto da alta sociedade colonial, e para isso Diegues extrapola nos estereótipos, desde o inexplicável desejo de Xica por fazer “aquilo”, ao passar pelo banquete de acasalamento repleto de estereótipos afrodisíacos , somado ainda a própria música de Jorge Ben que repete o verbo “dar”, logo depois do nome da protagonista em clara conotação sexual, até aos desejos da protagonista por ver o mar, ou entrar na igreja serem diminuídos a chiliques infantis, seguidos sempre da salvação de seu homem branco, o poderoso Contratador (Walmor Chagas).
Esta contradição vista na construção narrativa da protagonista é um excelente exemplo que corrobora com os pensamentos de intelectuais como Orlando Senna e Robert Stam quando afirmam que os cinemanovistas estavam mais preocupados com os aspectos políticos, do que exatamente com a profundidade que se pode chegar o debate racial brasileiro, bem próximo também do que Nascimento formula ao não deixar de valorizar a construção do espaço quilombola como alternativa autoritária ao poder vigente, mas que não anula os outros problemas do filme.
Uma outra leitura comum, entende estes tipos de ponderações como “patrulha ideológica”, primeiro observa Xica como uma mulher dona de seu próprio corpo, que possui o direito de expressá-lo como bem entendia, além disso, acredita que Diegues conhecia os riscos de trabalhar com estereótipos, e filosoficamente, enxergava a possibilidade de usa-los para combater o racismo, e não o contrário. Sobre a primeira, é bastante inócuo usar o Feminismo como defesa teórica de uma personagem escravizada, que tem seu corpo construído narrativamente como constante objeto de risada e desejo sexual; sobre o segundo ponto, um dos grandes nomes dos estudos de representação, o jamaicano Stuart Hall, dedica boa parte de sua bibliografia aos estudos dos estereótipos, enxerga também como uma possibilidade contrarrevolucionaria de representação um filme que valorize positivamente categorias que antes eram negativas, o negro agressivo e sexualizado, nos filmes blaxploitation, por exemplo, perde seu valor pejorativo, e passa ser o protagonista cujas ações possuem um propósito heroico , entretanto, o mesmo autor pondera o risco deste caminho, já que muitos filmes deste mesmo gênero mostram-se vazios em anular a complexa dialética que existe entre poder e subordinação que as identidades negras foram construídas historicamente.
Ainda que nunca tenha feito qualquer mea-culpa sobre sua personagem, sabe-se que Beatriz Nascimento participou como consultora de Diegues em Quilombo (1984), filme muito mais acertado no que diz respeito à representação da cultura negra, talvez uma prova concreta de uma desconstrução artística sobre o tema por parte do cineasta.
Numa sociedade regida sobre o mito da democracia racial, a ideia de rir do racismo é extremamente perigosa, e deve ser sempre questionada. É importante perceber o que havia antes da primeira protagonista negra chegar às grandes telas, reconhecer a sua importância, mas também ponderar e dialogar sobre a sua construção, afinal os estereótipos levados à telona sobre a Chica da Silva nunca chegaram a ser recebidos como heroicos, a negra “espertinha”, líder pelo poder de seu corpo, altamente sensualizada e que deixa qualquer homem aos seus pés não chega nem próximo a anular a dialética escravocrata, muito pelo contrário, além disso não descontrói qualquer tipo de preconceito, apenas o reforça, utilizando-se do riso como uma armadura ao racismo.
A Xica dieguiana não consegue usar a comédia como forma de embate e reflexão racial, pelo contrário. Durante o filme, estamos diante de uma personagem que parece não ter nenhum sentimento afetivo por nada ou ninguém, nem mesmo pelo próprio amante. Em situações como a chegada do Conde de Valadares à Diamantina, o casal entra em conflito para buscar uma solução que mandasse de volta o visitante à Lisboa, surge então como último recurso, de forma completamente natural algo que Xica diz ser resolver as coisas do seu jeito, ou seja oferecer o corpo da mulher como atrativo ao português, da mesma forma que já havia feito com o próprio Contratador; a sequência, dirigida num tom jocoso abusa de uma suposta sensualidade natural da mulher africana, aposta em risos e piadas, tratando de humorizar a relação, mas sem qualquer efetividade estética, e sim absoluto constrangimento representativo.
Apesar de tudo vemos aqui, sim, uma comédia, com alguns momentos de risada, com boa dose de reflexão política, mas que em sua construção narrativa não termina de ser suficiente coesa na sua proposta de fazer uma crítica cômica ao racismo. Enquanto Beatriz Nascimento, revolta-se com o tratamento histórico dedicado ao Contratador de Diamantes, e as aparições fantasmagóricas da figura de Teodoro, não é preciso ir tão longe, ao observar apenas o desenrolar do relato, há diversas escolhas de Diegues que parecem almejar um projeto antirracista, mas que não se concretizam, e serviram como mito para uma imagem falsa e estereotipada da Chica da Silva, e por consequência da mulher negra brasileira.