Cine Holliúdy, longa-metragem de 91 min, lançado comercialmente em 2013, escrito e dirigido pelo ator, roteirista, diretor e atleta cearense, Halder Gomes, conta a história de Francisgleydisson, proprietário de um pequeno cinema, o Cine Holiúdy, localizado em Pacatuba, cidade do interior cearense. Existem questões emblemáticas nessa obra de comédia que em sua estreia atraiu cerca de 23 mil pessoas em apenas dez salas do Ceará, alcançando a maior média de público do ano no país: 2.293 espectadores por sala.
O longa foi inspirado no curta-metragem do diretor, lançado em 2004, “Cine Holliúdy: O astista contra o caba do mal”, obra que foi premiada nacionalmente. Após o experimento ter sido um sucesso, o diretor foi convencido que deveria escrever o longa. Em 2009, seu roteiro foi vencedor do Edital de Longas-metragens de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura e as gravações foram iniciadas em 2010. Foi uma produção da ATC Entretenimentos em parceria com a NUPROC Lumiar/Canal Brasil, distribuição da Downtown Filmes e Paris Filmes e apoios da RioFilme, Governo Municipal de Pacatuba, Santana Textiles, AFG Taekwondo – Instituto Fábio Goulart, Distrivideo e Servis Segurança.
Acompanhamos a saga de Francisgleydisson, um exibidor de cinema mambembe com películas e projetor danificados atrás de alguma cidade que não tenha sido invadida pela tal televisão nos anos de 1970. Temos aí uma época em que as televisões estavam invadindo as casas brasileiras em massa e o medo do futuro do cinema pairava nos apaixonados e naqueles que dependiam da sétima arte para sobreviver. Maria das Graças ou “Graciosa” (Miriam Freeland) representa a voz da razão desde o início quando teme que os sonhos do seu marido ultrapassem a sobrevivência deles, afinal agora tinham o Francisgleydisson Filho ou Francin (Joel Gomes) o menino que, assim como o pai, tem uma criatividade aguçada e é fascinado pelas histórias mirabolantes contadas pelo pai.
Halder e Edmilson Filho são, além de artistas, atletas de taekwondo premiados. O diretor iniciou sua carreira no cinema como dublê em filmes de artes marciais em Los Angeles no início da década de 1990. Isso explica muito a tendência de ambos em buscar a mistura entre Ceará, artes marciais e cinema em todas suas obras sucessivas. A sinopse explica que esse filme “retrata de forma hilária, romântica, lúdica e nostálgica as exibições mambembes de cinema no interior do Ceará, na década de 70, no período em que a popularização da TV iniciava a sentença final aos cinemas nas pequenas cidades”.
Após Francisgleydisson encontrar a cidade ideal, Pacatuba, tentar “regularizar” o cinema com o prefeito, afirmar que não é “comunista”, ser passado para trás na venda de seu carro e tentar chamar atenção da população, enfim, chegamos ao ápice do filme que é a estreia do Cine Holliúdy. Mesmo com todas as intempéries, o exibidor só quer inaugurar seu cinema e rodar os filmes que tem ele como um segundo autor. Francisgleydisson tem em posse películas de filmes que não chamavam a atenção da censura e nem eram rentáveis, além disso ele entende que precisa chamar a atenção do público que gosta de ação, autenticidade e novidade. Por isso que o personagem modifica totalmente as obras com novos títulos que façam sentido para a platéia e com dublagens feitas no próprio idioma, o cearensês.
Temos uma sala de exibição precária, isso fica explícito através das reclamações de calor do público, além de que, no meio da exibição o equipamento pipoca fogo e para de funcionar. É aí que vemos a sagacidade do protagonista que precisa de maneira rápida e eficaz continuar com a atenção da platéia no filme e, aproveitar para que continuem frequentando o cinema. Ele então começa a narrar o filme atiçando a imaginação das pessoas com peripécias maiores do que realmente tem nas imagens. Os espectadores ficam boquiabertos com a desenvoltura de Francisgleydisson que convence não somente com a fala, mas também com o corpo. No final temos o povo saindo do cinema entusiasmados e ansiosos pelas próximas exibições.
O filme revolucionou com outra questão. Nos primeiros minutos já somos avisados: “Vocês vão assistir ao primeiro filme nacional falado em cearensês. Por isso, as legendas”. Esse não é mais um filme de comédia, é uma obra que veio fazer história. O cinema nacional tem em sua história uma diversidade de filmes que representa localidades e histórias nordestinas com atuações e narrativas sudestinas. A ideia de que o nordeste não produz uma boa arte ou cultura e que tem uma necessidade da aprovação e auxílio do sudeste têm sido quebrada em alguns filmes nas últimas décadas. Não por menos que a escolha da equipe de Halder em manter suas particularidades e fazer um filme com e para seus conterrâneos foi um tiro acertado. O acolhimento em seu território foi gigante, como já foi falado no início desse texto, mas a estratégia da distribuidora foi expandir aos poucos, primeiro no Ceará, depois nos outros estados do Nordeste para então ampliar para o resto do país. Eles entendiam que a aceitação do Brasil do Sul poderia ser mais difícil de conquistar. Mas, o sucesso foi tamanho que além de ter o segundo filme, teve a minissérie que agora em 2022 foi lançada a segunda temporada. A partir de Cine Holliúdy 2: A chibata sideral, as obras passaram a ter a Globo Filmes como produtora e isso modificou em muitos aspectos positivos e negativos. Mas aí é assunto para outro texto, né não?
Sempre soube que o Nordeste sozinho teria poder de consumo para justificar uma produção voltada para este mercado. Vivemos num país de dimensões continentais, populoso e com uma diversidade cultural imensa. (Halder Gomes em entrevista ao site AdoroCinema, 2013[1])
Essa diversidade cultural tão gritante, mas tão apagada por discursos hegemônicos tem sido cada vez mais discutida por pessoas que gostariam de ver um outro audiovisual sendo feito no Brasil. O filme que completa 10 anos agora teve um papel fundamental em levar esse debate para as localidades centrais do Brasil, como o eixo Rio-São Paulo. Apesar de ver mudanças ainda concentrado em circuitos fechados de festivais, tenho esperança em ver mais filmes autênticos nos circuitos comerciais. Carecemos de comédias sendo feitas de outra forma, longe de estereótipos negativos para territórios e corpos que já estão na subalternidade há tempos. Precisamos de verdades pelo olhar de quem vivencia e de quem tem cuidado com o que tá produzindo. Rir é um remédio, é um ato de resistência, é uma forma diferente de estar no mundo. E vamos combinar que o brasileiro tá numa fase tão barril que a gente tá precisando muito, né?
[1] https://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-104059/