PH Gomes
* professor, agitador cultural e idealizador do Deriva dos Livros Errantes. Contato: derivaerrante@gmail.com. Redes sociais: @derivadoslivroserrantes
No livro Futebol ao Sol e à Sombra, Eduardo Galeano pensou o futebol como uma prática social e cultural encantada que se transforma em saga, que desperta paixões, cria mitos, heróis, glórias e tragédias. Por meio de pequenas histórias, os personagens encantados do jogo da bola são exaltados pelo autor e pelas multidões de adeptos do esporte. Jogadores e torcedores são as almas dos estádios.
Em nosso horizonte discursivo, o futebol como prática de encantamento apresenta-se como elemento instigador para ser explorado nas realizações audiovisuais. Expor a paixão torcedora nas telas cativa o olhar despretensioso e o faz mergulhar nas culturas individuais e coletivas do futebol que muitos admiram.
Galeano, quando abordou a paixão futeboleira das arquibancadas, destacou:
“Uma vez por semana o torcedor foge de casa e vai ao estádio. Ondulam as bandeiras, soam mas matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.
Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros (…)”
No cinema, a cultura torcedora é objeto e sujeito privilegiado – seja em documentários, seja em ficções. Inúmeros filmes, em sua maioria, documentais, evidenciaram essa relação indissociável entre torcidas, futebol e estádios. Ritos, símbolos e territórios são explorados em narrativas efusivamente apaixonadas. Nas próximas linhas, queremos oferecer uma viagem para os apaixonados e apaixonadas pela sétima arte e pelo planeta bola.
Sem clubismos, iniciamos as recomendações com dois filmes que enaltecem a magia futeboleira do Flamengo. De 1980, FLAMENGO PAIXÃO é um filme do vascaíno David Neves que apresenta a trajetória do Flamengo tricampeão carioca em fins dos anos 1970 e o torcedor rubro-negro como o grande herói rubro-negro. A relação entre torcida, jogadores e clube é amplamente explorada e a Charanga Rubro-negra é um capítulo à parte nessa história. Um filme poético com beleza sem igual. O segundo filme chama-se PULMÃO DA ARQUIBANCADA, dirigido por Pedro Von Kruger e Marcel Costa. Nele, conta-se a história da torcida Raça Rubro-Negra, auto-intitulada a maior torcida organizada do Brasil. Apesar de todo o discurso marginalizador contra as torcidas organizadas no Brasil e no mundo, o filme traz à tona o lado enérgico da torcida e a importância de uma arquibancada forte em todo e qualquer clube de futebol.
Uma segunda vertente dos filmes futeboleiros destacados por nós é aquela que busca questionar e valorizar os estádios como espaço de sociabilidades, disputas e conflitos. Ou seja, espaços históricos e socialmente construídos que vivem as contradições do sistema capitalista imposto. A história do estádio do Maracanã é algo exemplar. Nas suas contradições, não podemos relativizar o papel exercido pelo setor da Geral e seus torcedores e torcedoras num passado recente e o atual estágio de gentrificação das arenas esportivas. No livro Ode a Mauro Shampoo e Outras Histórias da Várzea, escrito pelo historiador Luiz Antonio Simas e publicado pela Mórula Editorial, esbraveja assim:
“Malditos os que transformam o templo do jogo em ‘arena multiuso’, com ingressos caros, bistrôs, loja de conveniência, espaço gourmet e outros salamaleques. Futebol se joga em estádios com arquibancadas de madeira, cimento ou com o público confortavelmente instalado em barrancos”.
Em concordância com Galeano e Simas, a vida de todo e qualquer estádio está nos ritos de suas gentes em dias de jogo. Eles são movidos por gritos, pelo exagero dos sentimentos emocionais de crianças, homens e mulheres que devotam pelo seu time. Quando o estádio silencia é porque ele está vazio, sem vida e sem história. Pois, conforme Galeano verseja, as vozes da final da Copa de 1950 serão eternamente ouvidas por quem adentrar o estádio. Até quando, não sabemos. A elitização vem transformando-o nos detalhes os estádios históricos. Acerca do assunto, recomendamos assistir aos filmes GERALDINOS, de Pedro Asbeg e Renato Martins; MARACANÁ, de Andrés Varela e Sebastián Bednarik; e MARACANÃ – TEMPLOS DE EMOÇÕES, de Gerhard Schick.
A terceira e última vertente a ser recomendada é a paixão futeboleira do futebol marginal, da brasilidade miúda, dos clubes de bairro, do Brasil profundo. E aqui reverenciamos o projeto DOZE FUTEBOL e seu slogan: a arquibancada move o futebol. Trata-se de um projeto de realizações audiovisuais que buscou mostrar o futebol muito além das quatro linhas. Por meio da sua plataforma de vídeos e das redes sociais, a paixão futeboleira foi amplificada em nove webséries: Doze na história, Clássicos Doze, Doze convida, Doze vezes, Paixão, Templos, Mais do que noventa minutos, Da Arquibancada e Traços de Cássio. Dessas, a série PAIXÃO conquistou meu coração apaixonado pelo subúrbio futeboleiro. Em 16 vídeos, o Projeto Doze mostra a composição poética, laudativa e amorosa, dos cantos de torcedores e torcidas dos clubes de bairro de capitais (Bangu, Portuguesa Carioca e Juventus da Rua Javari), de cidades do interior (Friburguense, Goytacaz e Serrano) ou de times emblemáticos, como Coco-colo do Chile e Fortaleza. Em todos, a razão primeira e única é: entender essa louca paixão. E, aproveitando essa série, convidamos o leitor e leitora para uma ode ao subúrbio futeboleiro do Rio de Janeiro através da etnografia cinematográfica das torcidas da Castores da Guilherme e sua paixão proletária pelo Bangu; da enérgica Brava Raça Lusitana e seus gritos contemplativos pela Portuguesa da Ilha do Governador; e do amor eterno da torcida americana da Rua Campos Salles de outrora.
Na TV, no computador ou nas telas do cinema, afirmamos: a arquibancada move, sim, o futebol. E, como último ato nesse ensaio, um salve ao Cinefoot, há 13 anos fazendo festival de cinema de futebol.
Livros:
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre, L&PM E-books, 2015, 256 páginas.
SIMAS, Luiz Antonio. Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2017, 104 páginas.
Filmes:
Geraldinos, dos diretores Pedro Asbeg, Renato Martins. Documentário: Brasil, longa metragem, 75 min, 2015.
Maracaná, dos diretores Andrés Varela e Sebastián Bednarik. Ficção: Uruguai/Brasil, longa metragem, 75 min, 2014.
Pulmão da arquibancada, dos diretores Marcel Costa e Pedro Von Krüker de Freitas. Documentário: Brasil, longa metragem, 72 min, 2012.
Maracanã – Templos de emoções, do diretor Gerhard Schick. Documentário: Brasil, longa metragem, 89 min, 2012.
Flamengo Paixão, do diretor David Neves. Documentário: Brasil, longa metragem, 70 min, 1980.
Redes sociais:
Doze Futebol (2017). Websérie Paixão. Disponível em: https://www.youtube.com/@dozefutebol. Acessado em: 28/11/2022.