Matheus Strelow
A jornalista Nena, interpretada por Xuxa, está sentada dentro de seu Fuscão vermelho lendo uma carta que revela a morte de sua mãe adotiva. A trilha musical é melancólica, embalando seu copioso choro enquanto a voz over da remetente Lurdinha (Márcia de Oliveira) declama o conteúdo do texto. De repente cortamos para fora do carro e uma trupe de lavadores toma conta do filme, explodindo num número musical de pagode: é a banda Terra Samba apresentando seu sucesso Banho de chuveiro. Como se não bastasse, a calorosa performance é interrompida e cortamos de volta para o choro de Nena. Ela paga pela lavagem realizada pela banda, arranca o carro e o vocalista Chamusca olha para a câmera, falando: “Acho que ela não gostou!”
Essas guinadas repentinas de tom entre o drama principal e o aspecto musical de sensibilidade televisiva, paralelismos um tanto esquizofrênicos, permeiam Xuxa Requebra (Tizuka Yamasaki, 1999) por inteiro e podem ser entendidas como a marca registrada de sua articulação. O mais surpreendente, talvez, seja que apesar desta estrutura de acúmulo de interlúdios o filme funcione como experiência, um delírio pulsante mergulhado no mais puro suco da cultura pop noventista.
Xuxa Requebra marca a retomada do filão de filmes blockbuster da Xuxa após um longo intervalo desde Super Xuxa contra o baixo astral (Anna Penido, 1988), A princesa Xuxa e os Trapalhões (José Alvarenga Jr, 1989) e Lua de Cristal (Tizuka Yamasaki, 1990), este fazendo mais de 4 milhões de espectadores, sendo tido até hoje como obra definitiva de sua prolífica filmografia como estrela. Produções infantis num tom fabulesco, contos morais didáticos atravessados pelas músicas originais da Rainha dos Baixinhos, estes filmes se apresentavam em consonância clara com seu perfil midiático estabelecido em programas de auditório como Xou da Xuxa (1986-1992) e Xuxa Park (1994-2001).
Apesar do sucesso estrondoso, a escassez pós-fim da Embrafilme também atingiu filmes derivados do star system televisivo ao longo dos anos 1990, como por exemplo os Trapalhões, que só retornariam às telas em O noviço rebelde (Tizuka Yamasaki, 1997) e Simão, o fantasma trapalhão (Paulo Aragão, 1998), ambos ultrapassando 1 milhão de espectadores. Se até mesmo Angélica obteve sucesso de público com Zoando na TV (José Alvarenga Jr, 1999), coube a Diler Trindade reprisar a parceria lucrativa entre Xuxa e Tizuka para um retorno triunfal.
Xuxa Requebra foi realizado a toque de caixa, filmado em agosto e lançado em dezembro de 1999. O resultado final, porém, refletindo certos desenvolvimentos na cultura popular televisiva e musical, pouco se assemelha às fantasias cômicas como Xuxa e os Trapalhões em O mistério de Robin Hood (José Alvarenga Jr, 1990) e acaba lembrando mais um Cinderela baiana (Conrado Sanchez, 1998), última produção de Antonio Polo Galante. Xuxa Requebra caminha numa linha mais tênue entre a ingenuidade do produto infantil e os impulsos mais erotizados de uma pretensa chanchada popular brasileira. A presença de uma Tiazinha dominatrix chicoteando Serjão Loroza, por exemplo, pode-se associar diretamente à banalização do erótico nonsense pela TV aberta como no famigerado quadro Banheira do Gugu.
Como o trailer alardeia, Xuxa Requebra conta com um “elenco de astros jamais reunido no cinema”. As cameos de celebridades (como Luciano Huck, Feiticeira, a própria Tiazinha, Carla Perez, Cláudio Heinrich e Evandro Mesquita) e os números musicais de artistas de sucesso (como Claudinho & Buchecha, Fat Family e Banda Cheiro de Amor) são a atração principal, os ingredientes-chave de uma feitura sob medida para o arrasta-quarteirão; porém nunca soam deslocados devido a uma simples trama central que confere unidade a esta salada.
A canção-tema de Vinny (do sucesso Heloisa, mexe a cadeira) se repete incessantemente ao longo da projeção, dando o chamado ao filme e ao público: “Sacode a poeira / Dança a noite inteira / Deixa de bobeira e vem.” Se o drama é uma desculpa para trazer à tona os números musicais, que tracemos uma história sobre o ato de dançar, que enquadremos o Rio de Janeiro como um caldeirão de musicalidade permanente.
O fiapo de trama é o seguinte: uma escola de dança decadente está ameaçada de despejo por uma gangue chefiada pelo misterioso Macedão (a quem retornaremos logo mais). Nena se junta a sua família de criação, os remanescentes no prédio, para recrutar todos os ex-alunos da cidade com o objetivo de vencer o concurso Requebra 2000 e conduzir o prêmio de 200 mil reais para a reforma da escola. Ironicamente as atrações musicais não estão entre estes ex-alunos, mas surgem como figuras da classe trabalhadora, adjacentes às desventuras de Nena. Terra Samba são lavadores de carro, Claudinho & Buchecha são pedreiros, Vinny é pipoqueiro, Fat Family são seguranças de Macedão e a Banda Cheiro de Amor é a trupe policial que salva o dia. Quando a escola protagonista vence o concurso, cortamos para um carnaval comemorativo na Lapa. A música exala dos poros da cidade.
O único músico com participação direta na trama é Daniel, interpretando o par romântico de Xuxa. Sua atuação é sofrível, a química inexistente com Xuxa quase macula a vitalidade do filme. Em certo momento ele agarra um violão e faz uma serenata com a canção No ponto pra mim, cantando: “Amor não é só sexo, mas sexo faz parte do amor.” Entre esse casal protagonista não se vê sexo nem amor, e cabe a Xuxa sozinha emprestar a Nena uma trajetória de reencontro com o erotismo.
Sua personagem é fixada no ofício sério de jornalista, cabelo curto, veste roupas largas e pesadas além do óculos de armação grossa, na clássica aparência de uma “falta de vaidade” feminina. Ela está alheia ao festival de corpos dançantes, é apenas a articulista de toda a movimentação. Após ser forçada pela cômica Bárbara (Alice Borges) a mergulhar na praia, sendo filmada em câmera lenta ao levantar da água em sua nova forma sensual, Nena se despe da seriedade e dança um balé solitário em homenagem a sua falecida mãe de criação. Só então o romance com Daniel floresce, e não o contrário. Só então também que ouvimos uma música original de Xuxa, antes uma presença constante em seus filmes. Aqui ela não é o centro musical, mas a heroína que organiza a cacofonia ao seu redor.
Compramos a historinha menos pelo carisma de Xuxa e mais pelo puro domínio de cena de Elke Maravilha como a diabólica Macedão. Desde a revelação de sua identidade, a partir da revelação de não tratar-se de um homem, Elke nos toma de assalto pois parece ser a única atriz que realmente entende em que filme está, que vende o absurdo da situação. Seus esbravejos contra os capangas atrapalhados fazem transbordar um camp que está apenas subterrâneo nas inúmeras cenas musicais dos mundo dos mocinhos. Não é de se estranhar que o melhor número seja Mãe é uma só de Fat Family, quando a banda é contratada por Macedão como seus novos capangas.
É engraçado que o objetivo vilanesco de Macedão seja gentrificar o prédio da escola Dois Corações, cuja locação foi um então dilapidado Hotel das Paineiras, e que hoje seja um shopping de perfumarias turísticas para o Cristo Redentor. Macedão, administradora de negócios de fachada para o tráfico internacional, é a face mais genuína de um Rio de Janeiro carnavalesco que o filme tenta pintar. A mensagem moral anticapitalista, no fim das contas, soa cômica quando em cada cena temos encaixado um merchandising das dezenas de patrocinadores. Mas não passamos incólumes, sem o choque de uma sequência em que Xuxa, essa figura de inocência e prosperidade capital, é brutalmente espancada no covil de Macedão. Essa talvez seja a cena mais deslocada em sua filmografia mainstream, um dos raros pontos em que seu bem edificado status de estrela infantil é desestabilizado.
O filme seguinte, Xuxa Popstar (Tizuka Yamasaki e Paulo Sérgio de Almeida, 2000), ainda apontava para um certo amadurecimento nos temas e ambientes que Xuxa poderia ocupar, numa tentativa de responder ao crescimento dos baixinhos fiéis do começo da década. Xuxa habita o mundo da moda, convive com bichas e vive um webnamoro com Luigi Baricelli. Porém este é um filme bem menos resolvido, e de certa forma só reforça as qualidades de Requebra. O fato é que a partir de Xuxa e os duendes (Paulo Sérgio de Almeida, 2001) seus filmes retornariam ao métier do entretenimento infantil mais assumido, inocente e fantasioso, menos musical mas sempre apostando num vasto elenco de participações de celebridades para engrossar o caldo.
Xuxa Requebra pode ser justificadamente um filme ruim, até péssimo, para uma grande parcela do pensamento cinematográfico. É inegável, porém, que esteja muito mais inserido na tradição do cinema brasileiro do que tentativas internacionalizantes dos anos 1990 como A grande arte (Walter Salles, 1991), O quatrilho (Fábio Barreto, 1995) ou O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1998). Seja pela consonância com a filmografia dos Trapalhões, com filmes de cantores como Roberto Carlos em ritmo de aventura (Roberto Farias, 1968), ou mesmo com os filmes-revista carnavalescos como Berlim na batucada (Luis de Barros, 1944), este filme da Xuxa talvez seja sua chanchada mais genuinamente brasileira; ao mesmo tempo seu formato musical, aqui cimentado como possibilidade de sobrevivência do filão no novo milênio, se perdeu no tempo.