Naira Évine
Em que o futebol se parece com Deus?
Na devoção que desperta em muitos crentes e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais.
Eduardo Galeano em Futebol ao sol e à sombra
Futebol é coisa do povo. Inventaram por aí que o futebol é invenção de inglês, europeu, da elite, além disso ser mentira, o que nos interessa hoje é que o futebol precisava nascer. Os chineses há mais de 5 mil anos já praticavam o esporte e fizeram os primeiros campeonatos, mas os egípcios, japoneses, romanos, maias, sul-americanos, centro americanos, indígenas, cada um do seu jeito e com suas (não) regras, se juntavam aos montes para matar o tempo…. e as pessoas. Sim, sempre foi um esporte sangrento, ou uma desculpa para matar aquele vizinho chato?
Lembro de ter a oportunidade de ver de perto elementos do “Juego de Pelota”, uma espécie de futebol de quadril com uma bola de borracha da antiga Mesoamérica, no Museu de Antropologia na Cidade do México. Eles explicam um pouco sobre esse jogo [imagem abaixo] que acompanhava o movimento do sol e tinham regras a serem seguidas, porque não era esporte, era ritual sagrado, duravam dias e não se toleravam erros. Era uma simbologia de “combate mítico entre a noite e o dia”(1).
Não adianta falar dos nossos antepassados e suas culturas se eles só efetivavam o desejo mais profundo que temos ao assistir uma partida de futebol, hein? Uma partida de futebol é o suficiente para tirar todos os demônios dentro da gente. É o momento de suar, dançar, xingar, bater na parede ou no sofá, gritar com os vizinhos, abraçar, chorar, sair ou beber com desconhecidos e esquecer que problemas existem.
Cresci com um pai louco pelo Bahia, não tínhamos muitas coisas em nossa casa, mas a primeira imagem que víamos ao entrar em casa era do time do ECB, campeão em 1989. Não interessava, pelo menos uma vez por semana eu escutava “ah, mas quem tem o bicampeonato brasileiro?” em alguma discussão BaVi. Futebol cresce nos lares do povo brasileiro como uma memória enraizada. Faz parte da família. Há quem ame mais o time que a si ou a sua família né? Há quem tem ciúmes de um time como quem tem de um irmão.
Nos 21 minutos de Luazul, filme de 2022, dirigido por Letícia Batista e Vitória Liz acompanhamos a vida de Flávia, uma jovem que tem uma rotina cansativa de trabalho e estudo e joga futebol com os amigos para relaxar e Riva, uma jovem recém chegada da Europa que está se reaproximando da sua família materna e passa a morar com a avó, uma fanática pelo Corinthians. É isso, são três personagens principais: Flávia, Riva e o Corinthians. Uma das cenas mais legais é de um bate papo pós-jogo (ou baba) entre elas e os amigos, quando falam da avó de Riva que é tão fanática que tem um altar para o Corinthians. Convenhamos que isso não é nenhuma novidade quando se trata da paixão latinoamericana, né? A gente leva a sério nossas paixões.
Luazul é um filme sobre amor e futebol. O amor que nasce entre essas duas mulheres negras e o futebol como entrelace. Não tem nada a temer para a espectadora negra que está acostumada com a violência como obrigatoriedade em filmes com personagens negros e/ou LGBTQIAP+. É um filme gostoso de acompanhar, rotina cansativa, problemas com familiares, indecisão sobre a vida, juventude, amor, futebol, beijos, cuidado. São duas mulheres negras se conhecendo melhor, se gostando, se percebendo num relacionamento que precisa de ajustes.
Uma das cenas mais legais é quando Flávia conhece a avó de Riva num domingo de jogo. Estão as três sentadas assistindo a partida, quando o Corinthians faz um gol e vó e neta gritam com muita paixão. Essa cena me lembrou o quanto o futebol é um lugar de poder. E o poder capitalista, masculino, branco e europeu impera muito. Meninas que querem jogar futebol precisam entrar em batalhas extracampo antes de chutar a bola. Que o caminho trilhado por mulheres excelentes no futebol é muito mais difícil do que de meninos. Que a maior parte dos meninos negros veem como uma das únicas possibilidades de “se dar bem na vida” se tornando jogador de futebol. Isso tudo é revoltante. Futebol é negócio.
Quando eu vi essa cena no filme eu lembrei que eu dei um gelo no futebol por uns bons anos por questões políticas e porque eu não via mais o futebol que cresci assistindo com meu pai. Mas todas as vezes que me juntei com minha esposa e amigas para ver uma partida do Bahia, do Flamengo ou da seleção feminina do Brasil eu gritei, enlouqueci, gritei com o vizinho, bati nas paredes, fiquei rouca e no dia seguinte, ainda sem voz, mas com o sorriso satisfeito de dever cumprido, pegava ônibus lotado para labuta cotidiana. Esse ano fiz as pazes com a seleção masculina e estou enlouquecida porque logo mais tem outra partida.
Futebol é política e é do povo. das mulheres. do pobre. do povo preto. dos povos indígenas. das sapatransbiadas. da periferia. dos gordos. das pessoas com deficiência. dos nossos ancestrais.
o futebol é nosso.
(1) https://www.chichenitza.com/pt/jogo-de-bola