Lucas Reis
Ao final da década de 1960, o Brasil passava por tempos sombrios por conta da brutalidade da ditadura militar. E, de diferentes formas, o cinema brasileiro respondia a essa situação. As produções ligadas ao que ficou conhecido como Cinema Marginal são muito lembradas pelo deboche e anarquia dos filmes, que ridicularizavam o ambiente em que estavam inseridos. A famosa frase de O Bandido da Luz Vermelha exemplifica as características marginais: “Quando a gente não pode nada, avacalha! Avacalha e se esculhamba!”.
Tendo em vista tal perspectiva, poucas obras avacalham tanto o status quo como Transplante de Mãe, curta-metragem de Sebastião de Souza, inserido no filme Em Cada Coração Um Punhal, composto por outros dois curtas. A prática de lançar alguns curtas-metragens em conjunto para compor a duração de um longa-metragem não era tão incomum. Assim, era possível penetrar no mercado exibidor, voltado quase exclusivamente para o longa-metragem de ficção.
Os ditos filmes marginais não tinham tanta entrada no mercado exibidor pela grosseria embutida em boa parte das produções. Embora, haja exceções marcantes como o próprio O Bandido da Luz Vermelha. O filme de Rogério Sganzerla, inclusive, criava um chamariz muito inteligente. A história de João Acácio Pereira da Costa, o verdadeiro bandido da luz vermelha fazia parte da crônica policial paulistana e Sganzerla enxertava essa condição em seu filme como chamariz do público, mesmo que a narrativa em si não fosse uma biografia de João Acácio, longe disso. A “estética do lixo” marginal tinha como característica – pouco discutida entre os historiadores do cinema brasileiro – referenciar a cultura popular como uma forma de chamar a atenção do público para a sociedade em que estavam inseridos.
Em Transplante de Mãe, o vínculo com a cultura popular está no próprio filme. Afinal, a obra é uma adaptação da canção Coração Materno, de Vicente Celestino, lançada na década de 1930. Entretanto, a música foi regravada no álbum Tropicália ou Panis et Circensis, em 1968, na voz de Caetano Veloso. A regravação de Caetano é interessante porque expõe o absurdo da letra de Celestino de forma mais contundente. A tendência da Tropicália de dialogar com a cultura popular brasileira fica explícita nessa versão da canção que, segundo Celestino, foi inspirada em um mito medieval.
O mito que se transformaria na letra de Vicente Celestino é sobre um homem que recebe uma proposta de sua amada. Ele deve arrancar o coração da própria mãe e entregar à moça como prova de seu amor eterno. Aqui está a letra da canção:
Disse um campônio à sua amada
Minha idolatrada, diga o que quer
Por ti vou matar, vou roubar
Embora tristezas me causes, mulher
Provar quero eu que te quero
Venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga tua ordem, espero
Por ti não importa, matar ou morrer
E ela disse ao campônio, a brincar
Se é verdade tua louca paixão
Partes já e pra mim vá buscar
De tua mãe inteiro o coração
E a correr o campônio partiu
Como um raio na estrada sumiu
E sua amada qual louca ficou
A chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando da velha mãezinha
O pobre coração e volta a correr proclamando
Vitória, vitória tem minha paixão
Mais em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu
E a distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra, o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou
Magoou-se, pobre filho meu
Vem buscar-me filho, que aqui estou
Vem buscar-me, que ainda sou teu!
Arrancar o coração do peito da mãe como prova de amor é cantada com muito drama por Vicente Celestino. Ao contrário da versão tropicalista. Entretanto, é importante lembrar que, além das duas versões da canção, há outra versão cinematográfica. O filme dirigido por Gilda de Abreu, Coração Materno, homônimo da canção de Vicente Celestino, foi lançado em 1951, cinco anos depois do enorme sucesso O Ébrio, também uma canção de Celestino transposta para o cinema.
A perspectiva de Abreu é clara: adaptar uma canção do marido – Gilda de Abreu e Vicente Celestino eram casados – para fazer sucesso semelhante a O Ébrio, especialmente, após o fracasso comercial de Pinguinho de Gente (1949), segundo longa-metragem da diretora. Coração Materno não fez o mesmo sucesso de O Ébrio e Gilda de Abreu não dirigiu mais nenhum filme.
A adaptação de Gilda de Abreu trabalha em um tom melodramático, longe do humor proposto por Caetano Veloso e Sebastião de Souza. A narrativa é ampliada e traça a história de idas e vindas de um casal. Já para o final, quando eles podem ficar juntos, a moça diz que gostaria do coração na estátua de Santa Maria, na igreja da cidade e ele parte em disparada para roubá-lo. Ela então, cai em prantos, pois não é ouvida que se trata de uma brincadeira. Por fim, tudo entra em consonância e o casal realmente termina junto.
No filme dirigido por Gilda de Abreu não há espaço para que o personagem arranque o coração da mãe, de fato. Não faria sentido – na forma melodramática – uma cena tão brutal cujo senso caberia a uma obra de horror. Ou de humor, como é o caso de Transplante de Mãe. Neste, é desfeito qualquer vinculação amorosa de alguma profundidade entre o casal principal. O que importa no filme é o deboche. A possibilidade de agredir valores burgueses.
Dessa maneira, a grande diferença de Transplante de Mãe para a música de Vicente Celestino ou o filme de Gilda de Abreu é a própria mãe. No filme de Sebastião de Sousa, a figura materna representa tudo que há de ruim, percebida como uma pessoa sem qualquer virtude. Inclusive, quando o protagonista (John Herbert) escuta da moça que ele deve arrancar o coração da mãe: oportunidade que percebe para fazê-lo feliz.
Por si, já há uma quebra da figura materna bondosa e abnegada pelos filhos. Imagética costumaz de mulheres em que a maior representação é da própria Santa Maria, como no filme de Gilda de Abreu. Contudo, a mãe no filme de Sebastião de Souza ainda tem uma característica particular: é a representação da publicidade. Encantada por qualquer produto que vê na televisão, a dondoca é a personificação de uma vida voltada para o consumo. Mesmo que não tenha capital para comprar os produtos que sonha, age como se fosse endinheirada.
A sequência do coração arrancado do peito da mãe é o auge da publicidade como formação da personalidade. Antes de chegar ao coração, de fato, John Herbert encontra vários produtos que a mãe carrega no peito. Como se o coração estivesse ali apenas para bombear o sangue, mas todo o sentimento de amor que ela nutre é por bens de consumo.
A publicidade molda a personalidade dos consumidores ao vender uma forma de vida, quando anuncia um produto. No início da década de 1970, o Brasil tornava-se um país majoritariamente urbano e o hábito de assistir televisão era cada vez mais constante entre as famílias. Dessa maneira, havia todo um universo publicitário que se dirigia para esse setor crescente da classe média brasileira. No seu cerne, Transplante de Mãe assume o filme publicitário nas casas dos brasileiros como a representação do lixo urbano que fazia parte dos filmes marginais. Se a publicidade está no coração de uma pessoa de personalidade horrível, é o lixo que está no coração dessa pessoa.
O comportamento da mãe chama mais a atenção porque ela não faz parte da música – nem da primeira versão do filme, já que é a imagem de Santa Maria. Em Transplante de Mãe, a personagem é desenvolvida para dar o tom do filme. Se a versão da canção de Celestino e o filme de Gilda de Abreu são melodramáticos e a versão de Caetano Veloso opta pelo absurdo, Sebastião de Souza elege o esdrúxulo. Então, arrancar o coração da mãe não é uma prova de amor, mas a oportunidade de assassinar uma megera com quem se tem um vínculo eterno.
Essa condição “edipiana” é, em última instância, a possibilidade de assassinar o país em que o Brasil se tornou no final da década de 1960 e sua representação mais sórdida: o consumo voltado para classe média e o desprezo pelas classes baixas. Em dado momento, a mãe chega a afirmar: “a melhor coisa do capitalismo é ser capitalista”, mesmo que não haja qualquer indício que ela acumule capital. Contudo, é o verdadeiro amor às marcas, ainda que esteja na periferia do capitalismo: nada diferente de um país do terceiro mundo como o Brasil.
A publicidade foi um tema constante no cinema brasileiro do período: Bebel, Garota Propaganda (Maurice Capovilla, 1968), Meteorango Kid, O Herói Intergalático (André Luiz Oliveira, 1969), A Linguagem da Persuasão (Joaquim Pedro de Andrade, 1970) e Ainda Agarro Esta Vizinha (Pedro Carlos Rovai, 1974) são obras que admitem a publicidade como temática e, de maneira geral, a veem com desdém. Em especial, o filme de Joaquim Pedro de Andrade que, como o próprio título já entrega, faz uma análise dura das agências de publicidade que começam a ganhar corpo no país.
Ao contrário do documentário de Joaquim Pedro, Transplante de Mãe não opta por um tom sério. Pelo contrário, joga com o deboche o tempo todo. Todavia, as suas intenções são muito claras ao confrontar o Brasil daquele momento à sua maneira esculhambada. Afinal, quando a gente não pode nada, a gente avacalha, avacalha e se esculhamba.