Luciane Carvalho
O longa documentário de Eduardo Baggio, Amadores do Futebol, lançado em 2008, revela alguns aspectos interessantes sobre a brasileiríssima arte da bola no pé. Longe dos estrelismos das divisões e campeonatos profissionais, as ligas paranaenses amadoras, como a Taça Paraná e a Suburbana, são apresentadas como um futebol muito próximo de uma pureza. O título do documentário carrega em si uma referência não apenas ao amadorismo como aqueles que jogam futebol não-profissional, mas principalmente aqueles que o fazem por amor, apesar das dificuldades diversas. A falta de estrutura e verba dos clubes, a falta de preparo físico adequado, nada impede que o futebol aconteça. A paixão é o que move os personagens apresentados por Baggio.
Um elemento narrativo importante é a utilização de fotos de arquivo, que surgem eventualmente e remetem a um sentido de presença histórica dos times amadores, numa permanência temporal. Tal permanência revela a importância do futebol na sociedade brasileira. Trata-se de um elemento fundamental de nossa cultura e sociabilidade. O microcosmo dos campeonatos, do modo como surge no documentário, surpreende pelo modo de inserção nas comunidades, mobilizando trabalhadores e suas famílias em torno de um esporte popular, pertencente ao povo.
Os recortes de classe são evidenciados em diversos momentos, principalmente no que tange ao financiamento. Ao mostrar a liga suburbana de Curitiba, somos apresentados a uma questão quase moral: Trieste, time ligado à comunidade italiana do bairro de Santa Felicidade, possui uma estrutura muito diferente daquela de outros times, como o Combate Barreirinha, Vila Hauer ou Vila Fanny, e mais ainda dos clubes do interior. Financiado por uma grande e tradicional empresa do ramo alimentício, Trieste pode investir em estádio e preparação do time, o que o leva, fatidicamente, à vitória do campeonato.
Paralelamente aos jogadores que atuam sem compromissos maiores além do puro amor pelo futebol, já estabelecidos em outras profissões, o documentário mostra os times amadores como um local que permite um primeiro passo para aqueles que sonham em chegar ao futebol profissional. Um exemplo comovente é o jovem que declara ter contato com um empresário que prometeu colocá-lo em algum grande time, incerto ainda. A situação parece levantar um certo sentimento de que esse empresário é algum golpista, o que nos faz refletir sobre como o futebol, sendo o esporte mais popular no Brasil, coloca-se como uma fábrica de sonhos, onde poucos atingem o nível profissional, e menos ainda são aqueles que se destacam como super jogadores com super salários, negociados pelos cartolas a preço de ouro.
Nesse sentido, Amadores do Futebol apresenta o futebol como diversão e espetáculo muito ligado às periferias, a comunidades afastadas. Os jogadores são, em maioria, humildes trabalhadores, dentre os quais se destacam aqueles de classe social mais elevada, como o editor de jornal literário, apresentado diante de sua vasta estante de livros, ou mesmo o técnico engravatado que afirma motivar os jogadores com base em sua experiência profissional, ou mesmo o advogado, que é entrevistado em seu escritório. O distanciamento econômico-social entre eles e os muitos outros jogadores apresentados é gritante, como quando os comparamos com o jovem habitante de uma afastada comunidade aos pés da Serra do Mar, que se desloca por vários quilômetros para poder praticar futebol.
O início e o fim do documentário são semelhantes. Mostram o futebol como uma brincadeira infantil, onde as habilidades físicas e a paixão pelo esporte vão se desenvolvendo. Essas crianças podem almejar a entrada nas categorias de base do futebol profissional, ou então podem continuar no esporte por meio dos times amadores, onde o esporte se consolida como um hobby levado muito à sério. A facilidade com que se pode praticar futebol é marcante nessas cenas: basta uma bola, um espaço mais ou menos plano, algo que sirva como trave, e crianças dispostas a correr e disputar a bola. Talvez seja esse o motivo do futebol ter se tornado uma brincadeira-esporte tão popular, permitindo que as habilidades necessárias sejam desenvolvidas amplamente, gerando uma grande quantidade de atletas de grande nível – lembremos aqui de como o Brasil exporta seus grandes talentos, movimentando altas somas.
Para além da prática esportiva em si, o documentário busca entender o futebol amador como elemento de sociabilidade. Observamos as comunidades frequentando aos jogos nos pequenos estádios, mobilizadas em torno de seus times do coração. Os jogos são espaços de encontro, onde pessoas de todas as idades se reúnem. Uma atenção especial é dada para as relações familiares, como o grupo de esposas de jogadores que se tornaram amigas ao frequentar os jogos. Do ponto de vista delas, é importante estarem envolvidas com o esporte para entenderem seus maridos e monitorarem o comportamento deles, sendo um ato de não apenas apoio ao hobby, mas também de garantia de união familiar e proteção. O futebol amador retratado no documentário tem como protagonistas figuras masculinas – não há times femininos, e notamos poucas meninas jogando nas cenas iniciais e finais.
Por meio dos depoimentos, somos apresentados a diversas histórias de vida desses personagens. Desde o humilde adolescente que trabalha no sítio até o advogado, são histórias envolventes, que mostram a força com que o futebol mobiliza em muitos aspectos o dia-a-dia dessas pessoas. Neste documentário de Baggio, a delicadeza e leveza com que o tema é abordado referenda a importância do esporte como elemento de coesão social de comunidades, construtor de sonhos e motivador. Em tempos de Copa do Mundo, Amadores do Futebol nos lembra que tudo começa no campinho de várzea, com traves improvisadas, uma bola velha nos pés descalços da criançada; ser um amador do futebol significa sair do trabalho e, em vez de voltar pra casa e descansar, ir treinar com o time do bairro, do jeito que dá, e defender a camisa com tanta força quanto a seleção da CBF.
Não basta ser fã de futebol, assistir jogos e ter um time para torcer: envolver-se de corpo e alma, dedicar o tempo livre, preparar-se fisicamente e defender um pequeno time são elementos que demonstram a força desse esporte e como ele está emaranhado na sociedade brasileira em tantos aspectos que não podemos sair ilesos. É assim que alimentamos e somos alimentados pelo futebol.