As Distâncias dos Passes e o Afeto das Fintas: Amor, Futebol e Folclore nos Curtas de Leonardo Amaral e Roberto Cotta

Lucas Honorato

* Mestrando no PPGCOM da UFRJ, realizador e curador freelancer de cinema. Contato: hcctlucas@gmail.com . Instagram: @lucashonorato

Em pleno ano de 2022, ano de copa do mundo, tem sido particularmente difícil não pensar o futebol pelo seu caráter apoteótico, financeiro, glamourizado e memético que situa o futebol como prática mercadológica dentro do capitalismo contemporâneo. A partir desse impulso imediato, este texto pretende realizar um exercício de ir na contramão deste pensamento, válido, porém não exclusivo do esporte mais popular do mundo. Assim, com os filmes, pretende-se dar atenção a seu caráter sensível do cotidiano e de sua potência alegórica. O exercício se dá pelo resgate do caráter popular e afetivo que envolve o futebol, sua sociabilidade e elevação de certas questões formais. 

Aliás, pensar o futebol como afeto vai além do afeto realizado entre a troca da partida profissional de um Campeonato Brasileiro, uma UEFA Champions League ou uma Copa do Mundo. As suas experiências afetivas se dão desde o conjunto de uma latinha de refrigerante e um par de chinelo, da experiência do bar, da torcida, dos rachas familiares, do profissionais de categorias baixas, das experiências virtuais — como o ato de jogar e de criar jogos, como o Bomba Patch (1) — e também das exclusões provocadas por gênero, sexualidade e hierarquia interna masculina. A tentativa de migrar a atenção do futebol no cinema para além das grandes estrelas se dá em uma tentativa de dimensioná-lo ao folclórico. Relacionar o caráter popular para o campo do sensível com a interpessoalidade e a nostalgia, tal qual crônicas e músicas populares.

É nesta área que os filmes de Leonardo Amaral e Roberto Cotta, aqui destacados, apontam e utilizam o futebol como parte fundante de afetos, abertos a alegorias construtoras de relações de ambivalência entre aspectos idealistas e materiais. É neste futebol imensamente entranhado no cotidiano popular, com suas diferentes facetas e recursos sensíveis que a dupla, tal qual Bebeto e Romário, articula seus diferentes olhares, pontos de escuta e vozes sobre Futebol e Cinema. O futebol é tratado com sensibilidade e a sensibilidade do futebol se conjuga intertextualmente ao modo de pensar cinema, filosofia e afetos.

A escolha dos filmes se dá tanto pela passagem presente e rotineira do futebol quanto pelo seu posicionamento ao sublime de um certo vazio da alteridade que se molda entre o “eu” e o “outro”. O sublime nos filmes está nos pequenos gestos entre posse e passe, onde a troca da alteridade encontrada tanto no jogo fílmico quanto na linguagem do futebol, representam as suas relações elásticas de proximidade e distância, vazio e continuidade. Dessa forma, a relação simultaneamente individual e coletiva encontrada tanto na prática de feitura cinematográfica e na prática futebolística, evidencia tais aproximações e distâncias de três de seus filmes. Os filmes: Prenome Walter (2016), A Chinesa de Riad (2018) e Coração Migrante (2020) articulam distintos códigos da linguagem cinematográfica e do trato do futebol aos seus conteúdos. Estes diferentes empacotamentos formais utilizam o futebol como uma cifra moldável à composição das suas narrativas fílmicas tal qual as relações que os filmes envolvem com a alteridade

Em Prenome Walter, 2016, 7 minutos primeiro desses filmes, trata-se de um filme ensaio. Um filme de arquivo “remixado” que se baseia na flexibilidade da distância temporal e espacial criada pelos realizadores entre o filósofo Berlinense, Walter Benjamin e do jogador de futebol pernambucano, Walter da Silva. O filme começa com um retrato de Walter Benjamin sobreposto a uma ficha com seu nome ao som da música Ben, cantada pelo jovem Michael Jackson. Na sequência a paisagem sonora é invadida por uma piada agressiva sobre o peso de Walter da Silva, portanto sua inutilidade do futebol utilitário, realizada por Jô Soares em uma entrevista. A partir disso o filme é mixado por vozes em alemão, supostamente de Walter Benjamim e dos realizadores acerca do texto “O Colecionador”, de Benjamim em cima de imagens em baixa resolução de jogos e gols de Walter da Silva, jogando pelo Goiás e Fluminense em sobreposição. Ao lado disso, o filme conjuga imagens descritivas do fenótipo de Walter da Silva representado em 3D em algum jogo de futebol de Playstation 2.

Trechos presentes no filme, como “É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante” (BENJAMIN, 2009, pg. 239) e “Colecionar é um fenômeno primevo do estudo: o estudante coleciona saber” (BENJAMIN, 2009 pg. 245). A partir destas citações narradas pelos realizadores o filme faz algumas costuras com o que está sendo misturado audiovisualmente. Dessa forma, Leonardo Amaral e Roberto Cotta aproximam Benjamin ao contexto brasileiro e assimilam ao futebol de Walter da Silva, de uma maneira benjaminiana ao realizar a descontextualização do meio original e trazer ao nosso campo, ao invés de representarem no campo fora de casa. Há uma certa metalinguagem epistemológica que evidenciada na forma fílmica também vista na performance de Walter da Silva nos jogos com as repetições dos textos, colecionados na dimensão sonora do filme. Assim, compõem junto as jogadas de Walter da Silva uma espécie de mosaico alegórico deste ato primevo de conquistar saber. O gol aqui é mais balé do que função competitiva. O jogo aqui é produção de saber, corporal e imaterial. A jogada e o gol são belas por seu fator imaginário da nossa cultura, mas também pela descontextualização que o filme faz. A materialidade do esporte se dissolve e assim o colecionador se transforma um pouco em alegorista.

Nesse momento, a dimensão sonora e imagética do filme acaba por demonstrar o seu procedimento equivalente ao texto que situa a relação dialética do colecionador ao alegorista. Ambos tem suas diferenças, mas que nas palavras de Benjamim todo alegorista possui um pouco de colecionador e vice-versa. O filme então proporciona de forma mais difusa a relação entre colecionar e alegorizar. O futebol é centro e periferia. Aqui, o colecionador desenvolve a função do organizador de imagens dos filmes de arquivo. Tais imagens são tiradas de contextos e reorganizadas de outra forma sensível. Há um remix entre Futebol e filosofia, entre Alemanha do século XX e Brasil do Século XXI. A alegoria aberta do filme também se situa pelos acertos dos textos escolhidos que estão fora de ordem textual e assim também produzem o mesmo efeito produzido pelo alegorista.

Deslocar o Walter, “O gordinho do terror”, ícone do Fluminense e do Goiás,  que possui um futebol prosaico, como diria Pasolini, bem posicionado e assertivo, e assim como Walter Benjamin, se permite ao encanto é uma forma de utilizar o jogo alegórico que todo colecionador possui de acordo com Benjamin. O ato de narrar que o filme produz também é genuinamente benjaminiano, onde a sua reorganização alegórica produzida pelos narradores produz uma espécie de cura desses dois Walter ‘s. 

Tal cura para os dois personagens é enunciada desde o início pela música Ben, onde Walter da Silva é insultado por Jô Soares e Walter Benjamin é posicionado como um fantasma a partir da fotografia de seu rosto e ficha.

“Ben, nós dois não precisamos mais procurar
Ambos achamos o que procurávamos
Com um amigo para chamar de meu
Nunca estarei sozinho
E você, meu amigo, verá
Que tem um amigo em mim
(Que tem um amigo em mim)

Ben, você sempre está correndo por aqui e por ali (por aqui e por ali)
Você sente que não é querido em lugar algum (lugar nenhum)”

Aqui o filme parece iniciar uma aproximação de alteridade que vai além da matéria do filme, e também como uma espécie de declaração de cuidado e fraternidade entre os dois realizadores. O Futebol aqui serve como dança e poesia, demonstrando ser uma cifra aberta a semiologia que um filme remix pode realizar com qualquer imagem. Mas também como um reflexo dos afetos encontrados no ato da feitura fílmica.

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O curta A Chinesa de Riad, 2018, 15 minutos, incorpora alguns elementos e temáticas abordadas do primeiro filme. A utilização da imagem em baixa resolução, a apropriação de músicas “pop românticas” em língua inglesa e a criação de uma relação platônica. Estes recursos se envolvem em outro registro narrativo neste dispositivo fílmico. O comportamento aqui se desenvolve dentro da lógica de uma narrativa ficcional com seus conflitos. O filme inicia com um dueto realizado pelos personagens de Murilo Ribeiro (protagonista) e Sharon D. Olaes (a Chinesa de Riad) em um aplicativo de Karaokê. Eles cantam “Love me Like You Do” de Ellie Goulding por cerca de 3 minutos e na sequência o filme se transforma numa espécie de diário narrado e gravado pelo celular/olhos do personagem de Murilo para a sua amada. Aliás, as câmeras são creditadas para os dois atores.

Há uma diferença de olhar entre os personagens, elemento que na composição geral do filme começa a cultivar a construção da percepção do platonismo vivido pelo personagem de Murilo. O protagonista aparenta ter uma ternura apaixonada em seu olhar enquanto a Chinesa de Riad apresenta um olhar mais focado na execução da música. Sua performance é técnica e aparentemente sem envolvimento emocional. O diário na maior parte é narrado em inglês, como uma carta feita para ela em cima de seu cotidiano. Trabalhos, rotinas vazias em casa e momentos de passagem compõem a maior parte das texturas imagéticas que demonstram um certo lugar de solidão mesmo que acompanhado de barulhos, pessoas e animais.

A exceção que evidencia este platonismo é justamente nas trocas interpessoais mais fortes vividas ali pelo personagem a partir de uma partida de futsal. Uma “pelada” entre esses amigos é filmada e em interação com um deles, figurante interpretado por Roberto Cotta, pergunta se a amada realmente vem. A solidão e a entrega desequilibrada ainda ocupam um espaço camuflado. O possível platonismo e a promessa de que a sua amada virá ao seu encontro, mesmo que em um tom leve e afável, se conforma em uma solidão assistida. Aproximação e distanciamento se apresentam recorrentemente no curta, mas é nessa hora de uma coletividade mais profunda que algo parece se revelar. Na sequência pós jogo, eles estão no bar, todos conversando. Mas o que parece ser a verdadeira importância para o personagem é a vinda da Chinesa.  Essa conexão improvável entre Riad e Bahia aparenta exibir um estranhamento nesse oculto amor platônico e pretensamente  recíproco.

Futebol e sua relação de aproximação masculina é uma evidência de uma incapacidade de conexão mais íntima ao feminino além de uma relação romântica. Mas aqui o personagem parece distante de tudo, apesar de possuir um olhar profundamente romântico, aparenta ter uma dificuldade de conexão interpessoal mais profunda. No jogo ele só grava e não participa e não aparece suado, no bar não está envolvido na conversa e em outros momentos está constantemente vagando entre espaços vazios na rua, em casa e seus trabalhos.

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Coração Migrante, 2020, 22 minutos, é um filme narrativo com traços modernistas. A obra se trata como uma crônica audiovisual de Juninho Misancene (Murilo Ribeiro)  que da Bahia chega ao interior de Minas Gerais para morar com seu tio (Camilo Lélis) e ser contratado para jogar em um time de futebol local. O filme recebe duas intervenções na sua trajetória fílmica que vão além da encenação narrativa mais objetiva. A primeira é a utilização de um cantor como uma espécie de arauto emocional do filme e de Juninho. A outra intervenção é a aparição da imagem onírica/idealista de Rosilene, paixão que Juninho deixou para trás. Leonardo e Roberto conduzem  em sua mise-en-scène  um certo humor que flerta ao caricato por parte da arte e da interpretação vista nos personagens, com destaque no tio de Juninho e no dono do Bela Vista Futebol Clube, Russo APR. Simultaneamente eles também trazem ao filme uma encenação doce e aberta a partir da dissociação entre imagem e som e da recorrência da música como guia emocional das cenas. A música não age como uma bengala narrativa, mas age como um aprofundamento de intimidade ao popular e cotidiano.

A dimensão corporal, com ênfase no futebol de Juninho Misancene, também dialoga com uma caricatura que materializa seus percalços, como proletário do futebol, do restante da vida de explorado e por sua relação desencontrada ao amor. No restante de sua condição de interpretação, Juninho fala pouco, vislumbra muito e suas performances de reação aos trabalhos caminham a passos tortos. Há aqui uma sátira irônica desse brasileiro folclórico sem amor, explorado porém esperançoso e de certa forma ingênuo. Um exemplo direto nisso, se dá ao final do filme onde atrasado para seu primeiro jogo, vemos sua performance destrambelhada com a primeira vez que ouvimos a sua voz. Ouvimos sua fala através de uma sobreposição sonora de uma entrevista de Juninho para uma rádio local. 

Nesse momento final ocorre um movimento parecido com o Prenome Walter, porém de uma maneira mais transparente a narrativa. O futebol perdido de Juninho é uma reação alegórica direta da sua entrevista. Por vezes o humor se dá por uma reação direta ao texto, outras horas por contraste e oposição, mas ainda sim mais relacional com a narrativa. É também nesse momento quem é a mulher que aparece constantemente para ele e o nome de Rosilene é revelado. A relação do futebol desengonçado e caricato se desenvolve em um pênalti sofrido, onde Juninho fica com o corpo estendido no chão. Após isso, em um ato levemente sórdido e bobo de um jeitinho brasileiro, na hora da cobrança, levanta subitamente e faz o gol. O gol aqui é conquista duplamente material e ideal. Na entrevista revela Rosilene na promessa de um gol. O gol é feito e a possibilidade de continuar o sonho de jogador ganha força e de certa forma a possibilidade de um reencontro com Rosilene. O gol depois de tantas quedas é uma forma de continuar e prosseguir. A força de continuidade dessa conquista também se evidencia com a cena final, onde Juninho lava e estende a roupa para secar.

Elementos como o corpo estendido no chão ao trovador presente no filme, conversam e refratam a música popular brasileira de artistas como João Bosco e Aldir Blanc com a característica de crônica presente nas músicas de Adauto Santos e Paulinho da Viola em uma associação folclórica ao trabalhador masculino com suas relações amorosas ao futebol. Assim como as suas complexidades. As narrações cotidianas e analogias presentes principalmente nas músicas de Aldir Blanc e João Bosco se relacionam  fortemente com os últimos dois filmes.

Nesses filmes, o futebol se exibe como um índice de presença arraigada ao popular e se envolve em um caminho profundamente simbólico. Este poder simbólico do futebol na cultura brasileira pode ser tratado como foco, no caso de Coração Migrante e Prenome Walter, ou tangente como no caso de A Chinesa de Riad. Através desses dois caminhos, os filmes contemplam a atração folclórica desse esporte em uma arte com características populares. 

 

(1) Bomba Patch é a modificação mais popular de um jogo virtual de futebol. A modificação é do jogo Pro Evolution Soccer 6 (PES) de Playstation 2.