Yan Manchester
* redator, formado em Estudos de Mídia (UFF) e está se especializando em Comunicação e Marketing pela PUC Minas. Adora se expressar através da linguagem escrita e escreve muito melhor quando o Vasco da Gama vence. Contato: yan_manchester@id.uff.br ; Instagram: @ylamanchester
O que te vem à cabeça quando escuta (ou lê) sobre a Copa do Mundo de 1950? Bem, deixa eu apostar: dificilmente, não seria sobre a final entre Brasil x Uruguai. Diria ser impossível não pensar, imediatamente, no Maracanazo.
E se eu fizesse outra ponderação, mas, desta vez, sobre algum personagem daquela final. Talvez, alguns (muitos) responderiam Ghiggia. Por outro lado, acredito, a maioria lembraria de Barbosa.
As memórias envolvem diversos dispositivos que transcendem o espaço-tempo da duração de vida dos indivíduos e grupos, evocando atravessamentos extraordinários.
E é aí que entra em cena Barbosa, curta-metragem de 1988 com direção de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. O filme é baseado no conto “O dia em que o Brasil perdeu a copa” (1975), de Paulo Perdigão, publicado em sua obra “Anatomia de uma derrota” (1986).
A cinematografia desenvolve sua narrativa trinta e oito anos depois da Copa do Mundo de 1950, quando Paulo, interpretado por Antônio Fagundes, volta no tempo a fim de impedir o gol que derrotou o Brasil, destruiu seus sonhos de infância e acabou com a carreira do goleiro Barbosa.
Amargurado, Paulo constrói uma máquina do tempo e consegue voltar até a data da grande final, 16 de julho de 1950, para tentar reverter o destino que tirou o título da Copa do Mundo do Brasil em plena inauguração do estádio do Maracanã.
Todavia, mais do que trazer a final em si, a obra de Azevedo e Furtado analisa a repercussão desta na condenação moral que o goleiro da seleção brasileira, Moacyr Barbosa, passou a sofrer, sendo imputada a ele a culpa da derrota frente ao Uruguai, e consequentemente, a derrota no campeonato mundial.
O sistema de jogos nesta copa determinava um grupo final de quatro seleções (Brasil, Uruguai, Espanha e Suécia). Todas as seleções já haviam se enfrentado, logo Brasil x Uruguai era o jogo decisivo. Um empate garantiria o título ao Brasil, dado o número de pontos. Já pelo lado charrúa, apenas a vitória interessava para tornar-se campeão do mundo.
Em síntese, o filme é concebido através de documentos de época, arquivos de filmes, pesquisa de áudio, além da estratégia que mescla uma narrativa ficcional com o depoimento de Barbosa.
Esta estrutura heterogênea adotada pelos diretores do filme faz com que o entendimento acerca do real e da ficção fique embaralhado. Ainda, soma-se à tática de Ana Luiza e Jorge a entrevista de Barbosa, onde é induzido o sofrimento permanente que aquela derrota ainda trazia a ele.
No Brasil, a pena máxima de prisão é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que não cometi.
Moacyr Barbosa
Enveredando para uma seara mais teórica, de acordo com o sociólogo e historiador Michael Pollak, a memória surge como “um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK. Memória e identidade social). Portanto, ela está sujeita a lacunas, supressões e silenciamentos.
Em linhas gerais, Pollak aponta, também, a memória como um fenômeno coletivo que constitui-se a partir de uma construção social. Por ser uma construção, a memória envolve um processo de escolha, sendo parcial e seletiva.
Segundo Pollak, as memórias – sejam elas individuais ou coletivas – incluem sempre três elementos: acontecimentos, pessoas (ou personagens) e lugares. Os acontecimentos consistem em eventos dos quais uma pessoa pode ter participado diretamente ou não, isto é, que podem ter sido vivenciados “por tabela”, a partir do pertencimento do indivíduo a um determinado grupo.
Outrossim, as personagens que integram as lembranças de alguém podem efetivamente ter feito parte do seu círculo de convívio, ou podem apenas ter-se tornado conhecidas devido a sua relevância como figuras públicas.
Para Pollak, os lugares que servem de base para o desenvolvimento das memórias de um sujeito podem ter sido realmente frequentados durante certo tempo, ou podem ter sido incorporados de modo indireto às suas experiências.
Em suma, a constituição de memórias envolve não só experiências vividas diretamente, mas também, experiências herdadas, aprendidas, transmitidas aos indivíduos pelos grupos através do processo de socialização.
Nos últimos 38 anos se falou tanto sobre este jogo que eu não sabia mais o que vinha de minha própria memória. O que eu via agora eram 200 mil pessoas caminhando para a tragédia, confiando numa coisa tão absurda como a justiça da História. Nos próximos 38 anos aquela derrota ficaria como o símbolo do destino de um país onde nada dá certo.
Paulo, personagem de Antônio Fagundes em Barbosa (1988)
Paulo assiste na televisão o último jogo e o mesmo gol. Na voz em off ouvimos Paulo narrando os efeitos daquela partida e como a derrota impactou sua vida. Afinal, quem nunca imaginou voltar no tempo para alterar o resultado de alguma partida?
É bem verdade que intervir na história para o seu benefício próprio tangencia uma espécie de arrogância “suprema”. Reescrever a história e dar uma nova interpretação àquela situação conforme os seus anseios e suas questões pessoais mal resolvidas? O que é isso, Morgan Freeman em mais um de seus papéis como deidade?
Beleza, quantas vezes não sonhamos em poder retornar para consertar uma peça que o destino nos prega? Foi isso que Paulo fez. Paulo quis reescrever o passado segundo o seu achismo, quando gritou o chamado para o goleiro Barbosa.
A personagem se coloca como sendo maior que a história, e, assim, resolve intervir supondo uma superioridade de quem sabe o melhor para todos. Mas é melhor para todos quem?
Além da discussão sobre o tempo e a viagem no tempo, o curta-metragem abre um espaço muito apropriado para discutir questões como o futebol sendo um fator sociocultural no Brasil e, sobretudo, o racismo e a intolerância. Os depoimentos do goleiro brasileiro são impactantes.
Moacyr Barbosa era negro. Em uma sociedade racista, ele foi declarado como “o homem que fez o Brasil chorar”, pecha que carregou por cinquenta anos até falecer em 2000. Mas a história de vida de Barbosa, é, por si só, um grande exemplo de como a história, caso não possa ser refeita, poderá ser reescrita.
Em 2020, após construir o Centro de Treinamentos do Vasco da Gama, o torcedor Cruzmaltino, por meio de votação popular, decidiu homenagear Moacyr Barbosa como o novo nome do CT localizado na Cidade de Deus.
O ídolo cruzmaltino fez parte do Expresso da Vitória e defendeu o gol vascaíno entre 1945 e 1955 e entre 1958 e 1960, conquistando cinco vezes o Campeonato Carioca (1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958) e o Sul-Americano de Clubes de 1948, o primeiro título continental do mundo, sendo decisivo na competição.
O Vasco foi um dos pioneiros em utilizar jogadores negros em suas equipes. Fato que é lembrado com orgulho por seus torcedores. Assim, eles iniciaram uma campanha para que a diretoria do clube batizasse o local com o nome de Barbosa. E assim quis a história.
Dando nova expressão a história, Paulo não queria modificar o passado, mas, sim, o presente. Paulo libertaria Barbosa e, consequentemente, a causa de seu trauma.
Concluindo, Paulo vê sua ação como um método de justiça com a história. Já no mundo real, não possuímos uma máquina do tempo, tal qual Paulo elaborou. Não podemos voltar ao passado e alterá-lo, como Paulo tentou, mas podemos reescrevê-lo. Assim, caminhamos de certa maneira para o futuro, ainda que de volta no tempo.