Crença no Mito

Matheus Strelow

Aos idos de 1962, no calor das duas vitórias consecutivas do Brasil na Copa do Mundo, Garrincha, alegria do povo (Joaquim Pedro de Andrade) se aproximava do fenômeno popular do futebol com reverência; partindo do retrato em cinema direto sobre o craque Botafoguense em direção a um pretenso diagnóstico das paixões que constituem a conexão espiritual do futebol brasileiro com seu povo. Anunciado em seu cartaz como “um filme verdade”, este grande filme de Joaquim Pedro canonizou-se como uma das obras seminais do cinema brasileiro moderno, uma demonstração de certas preferências e restrições poéticas que formariam uma nova política cinematográfica dos anos 1960 comumente associada ao Cinema Novo. Juntamente a outros exemplares posteriores de cinema direto como Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) e A opinião pública (Arnaldo Jabor, 1967), Garrincha é ancorado por um narrador onipresente (aqui tratando-se da voz de Heron Domingues) que dirige-se diretamente ao público como portador do discurso, a princípio contextualizando situações para depois permitir-se declarar opiniões próprias. A figura mítica de um Garrincha homem do povo — ou sua desconstrução — passa pelo crivo do narrador, está racionalizada pela voz dos intelectuais que o retratam. 

É interessante retomar Garrincha, talvez a cinebiografia futebolística mais célebre do cinema brasileiro, para enfatizar a singularidade de outro filme também realizado em 1962: O rei Pelé, de Carlos Hugo Christensen. Embora se venda pela alcunha de “documentário”, um termo que supunha a mesma “verdade” de Garrincha, O rei Pelé é um melodrama assumido e encenado, uma aparente peça publicitária produzida para arrasar quarteirões na carona da popularidade do então astro de apenas 22 anos. À primeira vista parece uma total antítese das intenções modernistas de ideólogos do Cinema Novo; à observação mais atenta, revela-se um filme muito mais complexo e interessante, de forma absolutamente moderna, antiilusionista, preocupado com sentimentos humanos em detrimento de uma desconstrução intelectual do mito. Na verdade, O rei Pelé parece contribuir para uma mitificação ainda em progresso, a primeira tentativa de dar sentido à trajetória de um semideus em ascensão astronômica porém ainda mais próximo da terra do que da eternidade. O filme não busca questionar sua predestinação, mas imagina Pelé como um herói garoto, ainda lidando com as pressões do público e da carreira para fazer jus a seu talento.

Como se dá o registro desse docudrama? Na versão digital que obtive para visionamento, o filme começa com um plano externo noturno da casa da família de Pelé. O narrador, Fábio Cardoso (também personagem visível no filme), se direciona ao público dizendo: “Como é de noite, vamos acender ao lampião que está em frente a sua casa.” O poste se ilumina pela magia da ficção. Em seguida um senhor passa cambaleante pela calçada, e Cardoso comenta: “Um bêbado que não tem nada a ver com a história e que xinga a gente.” Um zoom nos aproxima da porta de casa e cortamos para uma interna. Dondinho (Clementino Kelé) é convocado a chamar a parteira: Pelé está prestes a nascer. Nestes primeiros segundos fica claro o gesto tomado por O rei Pelé de não só estabelecer um regime dramático característico da cinebiografia, mas também dar consciência ao público de tratar-se de uma encenação, de que uma história está sendo contada a nós por meio das ferramentas do drama cinematográfico. 

Isso fica ainda mais evidente quando percebemos que a projeção será entrecortada por cenas em que Pelé é entrevistado por Fábio Cardoso num estúdio enquanto Nelson Rodrigues (autor dos excelentes diálogos) datilografa tudo. É o filme encenando a escrita de seu roteiro, reforçando os dizeres de um dos letreiros da sequência de créditos iniciais: “Êste filme está baseado em fatos absolutamente reais, segundo o depoimento do próprio Pelé, seus familiares e das pessoas que com êle convivem desde sua infância.” [sic]. Nós, o público apaixonado, estamos assistindo à fabulação de uma biografia relatada em primeira mão pelo próprio rei, sendo convidados a imaginar estas situações pelo poder da condução de Christensen.

O realizador argentino teve uma carreira profícua no cinema latinoamericano antes de se estabelecer no Brasil no meio dos anos 1950. Filmes como La muerte camina en la lluvia (1948) denotam seu tino para uma plasticidade sensorial, um gosto pelo sórdido sedutor do melodrama. Embora já tivesse filmado no Brasil em obras hispanófonas, seu primeiro filme propriamente brasileiro foi a superprodução da Maristela Mãos sangrentas (1955), um thriller espetacular de fuga de prisão completamente aliado a suas sensibilidades anteriores mas também fundador de sua predileção por contos morais desafiadores em sua carreira brasileira. Até uma comédia de erros como Amor para três (1958) — já realizada sob sua produtora Carlos Hugo Christensen Produções Cinematográficas — trata o amor romântico com irreverência, criticando o casamento como instituição burocrática mas acreditando em seu valor como sentimento genuíno.

Em O rei Pelé a moral reside nas provações que acometem Pelé, na superação meritocrática de suas condições desfavoráveis. Os fatos concretos biográficos são encadeados como obstáculos característicos da jornada do herói na direção de sua consagração. A primeira hora se ocupa de narrar a infância e a adolescência de Pelé, sendo interpretado por três atores ao longo das passagens de tempo. Quando criança, ouve no rádio à derrota do Brasil contra o Uruguai na Copa de 1950 e declara para si que o resultado seria diferente se estivesse jogando. Líder da trupe boleira de amiguinhos do bairro, tem suas preces a Deus atendidas ao conseguir assaltar um carregamento de amendoins para vender e financiar a formação de um time; isto resulta, porém, na morte de um dos meninos, forçando Pelé a questionar seu direito de jogar. Apesar das negativas de sua mãe (esta interpretada pela própria Celeste, mãe de Pelé), o chamado dos gramados é mais forte que ele. 

No último terço, porém, o filme assume sua veia “documental” ao integrar um grande leque de imagens de arquivo de eventos como as Copas de 1958 e 1962 a pequenos interlúdios encenados que dão corpo cenográfico a essas situações. Aqui Pelé interpreta a si mesmo, na sua primeira de muitas atuações no cinema brasileiro. Fatos como a vitória em 58 e a contusão em 62 servem à estrutura melodramática de ascensão e queda, forçando Pelé a encarar a fragilidade de seu status. Os demônios que o assombram são corporificados na figura ficcional do ex-jogador Pitota (interpretado por Lima Duarte), aposentado e indigente por causa de uma lesão incapacitante. Pitota é a morte-espelho do coleguinha de infância, desencadeando a melhor cena do filme, uma sequência de pesadelo onde o Christensen gótico de Anjos e demônios (1969) e A mulher do desejo (1975) aparece em plena forma.

A expurgação dos anseios de Pelé dá lugar ao grande retorno na final da Libertadores de 1962 contra o Peñarol, a vitória do Santos e de nosso herói em sua — até então — biografia. Pelé e Fábio Carneiro são rodeados de repórteres, e revelam que estão prestes a realizar o filme que assistimos. O filme retorna ao começo, expondo as câmeras presentes no estúdio da entrevista, circulando para sua ideia de honestidade sobre o contar dessa história. Talvez a crença no mito seja o que diferencia O rei Pelé do produto superficial em que poderia ter se tornado, como a crença no sublime que consagraria a obra-prima O menino e o vento (1967). Ao contrário de Garrincha, em que o filme se projeta sobre o retratado, O rei Pelé é guiado pela voz de Pelé; o olhar de Christensen se ocupa de imprimir beleza e sentido à autoficção do rei. Para desconstruir um mito, primeiro deve-se crer nele.