Direito do Nada

Nada (2017) é uma pequena pérola da Filmes de Plástico, lançado alguns anos depois dos primeiros curtas da produtora, chega ao grande público alguns anos depois do Ela Volta na Quinta (2015), e um ano antes do Temporada (2018), é um dos curtas abre-alas para o aclamado No Coração do Mundo (2018) -primeiro longa do Gabriel Martins, e tudo que o seguiu.  

Protagonizado por Clara Lima, o filme conta a história de Bia, uma jovem que aos 18 anos vive as vésperas do tão angustiante ENEM. Tudo ao redor da personagem está focado apenas nessa prova. Em pouco tempo, Martins consegue construir uma imersão narrativa capaz de deixar o público com a vívida sensação de que aquele momento é vital ao seguimento da vida daqueles jovens. 

Ao contrário de seus colegas, Bia nada contra a maré. Faz questão de deixar aos sete ventos o seu desprezo pelo exame. O título do filme é o mote central da personagem, a protagonista quer ter o direito a escolher fazer nada. Tal atitude sintetiza o sentimento de muitos jovens de sua geração, a transição da adolescência para a vida adulta parece ser permeada por um aperta de botão, ou mais precisamente por um par de respostas certas numa prova, afinal chegar à maioridade, ao contrário de ser visto como um momento de transição positivo, apresenta-se como a chegada ao precipício, qualquer escolha que não seja a certa, pode gerar uma queda eterna. 

Interessante observar que a música encaminha este processo de passagem, característica marcante do cinema de Martins, o som das ruas ocupa o cotidiano de seus personagens, sempre utilizando artistas populares, vide Mc Carol em seus dois longas, e a próprio protagonismo da rapper mineira. O filme transporta-nos através de um travelling longo passando pela cidade de Contagem em movimento constante- independentemente de qualquer escolha juvenil- ao som de Cabeça de Gelo de Sharon Israel, até chegar aos fones de ouvido de Bia sentada no piso de sua escola.  

Da mesma forma que Jefferson De busca os Racionais Mc em Distraída para a Morte (2001) para situar sua Carolina de Jesus, Gabriel Martins parece ter percebido que posicionar musicalmente sobre a sua obra vai muito além de um adorno estilístico, a trilha sonora abraçada ao que mais se escuta nas ruas mineiras- o funk em especialaproxima o cinema da música, adverbializa os personagens e seu entorno, desmitifica os preconceitos sobre ambos os mundos, finalmente familiarizando obra e público. 

Clara Lima empresta sua persona de rapper à personagem, pressionada pelos conflitos escolares e familiares, é somente em seu quarto, com uma base ao fundo, que ela se encontra com seus pensamentos, ainda assim, não há facilitações narrativas, o filme não se centra na vontade de uma artista em produzir, Bia realmente quer ter a opção de não fazer nada, tomar um tempo para si. 

Além do som, a composição de arte confere ao filme o que o roteiro possui de mais forte, a cotidianidade daqueles fatos, seja na meticulosa escolha dos objetos que fazem parte da narrativa, como por exemplo, o estrondoso microfone da coordenadora da escola (Karine Teles), ou pela decoração da casa da família protagonista, juntos conferem uma sensação de lugar comum ao espectador. Não há nada de novo nos acontecimentos daquela família, todos sabem do drama do jovem brasileiro no vestibular, mas é justamente usar a lupa do cinema sobre isto de uma maneira simples, mas ao mesmo tempo honesta e profunda, que eleva o trabalho de Martins. 

Escolher conferir a uma jovem negra o desejo de escolher o nada é uma mensagem muito importante. A misé en scene não pretende ser panfletária, ou desenvolver grandes debates raciais em sua superficialidade, o debate está nas entrelinhas. Os jovens negros passam a vida ouvindo de seus país que ouviram de seus avós que se deve aproveitar todas as oportunidades, tudo é mais difícil, deve estar sempre trabalhando, e produzindo algo de valor capital, portanto até mesmo a coragem de expressar na mesa o desejo pela inércia embasado na repudia ao sistema único de avaliação, e apontar a falácia do sucesso garantido via mundo universitário é uma revolução. 

Dessa forma, ver a protagonista escolher o seu destino numa ida ao terminal rodoviário e apontar uma direção aleatória ao seu destino não significa vê-la jogando a sua vida no lixo, ou sacramentar que esforço em lhe garantir uma boa educação pelos seus pais foi em vão. Nada (2017) é a construção de uma possibilidade, de mais uma possibilidade. Uma jovem saudável, bem-educada, viver a oportunidade de ir ao seu próprio quarto, refletir sobre o seu mundo artisticamente e escolher opções distantes das comuns escolhas em sua sala de aula é a demonstração que pelo menos alguns dos privilégios brancos está sendo partilhado.   

O erro é privilégio branco na nossa sociedade. Se por um lado, um filme com um jovem branco escolhendo não fazer nada, e tomando o seu destino na alça de uma mochila seria um road movie indie cultuado vide Into the Wilde (2007), ou um filme sobre as dificuldades de um bonvivant lidar com a herança de família comunista, como se problematiza em Dedé Mamata (1987), para uma mulher negra, o tempo é sempre o do agora, o drama de suas decisões é permanente e irrevogável desde o seu nascimento, portanto, pelo menos, a tentativa da quebra desse paradigma é fundamental.  

Um espectador desavisado pode reduzir o filme ao seu título, determinar que Bia quer apenar “vagabundear” livremente, mas numa sociedade onde a liberdade é privilégio de cor, não há simplismos baratos na coragem de não seguir padrões. As lutas do cotidiano são um constante desafio. Nada (2017) coloca de um lado a falácia de um sistema educacional que se vende como solução única dos problemas dos jovens, quando a cada ano que passa se transforma num dos negócios mais lucrativos e desumanos para grandes empresários, e por outro, a pressão de ser uma mulher negra, dar o tiro certeiro, e fazer a coisa certa com todas as expectativas que te circulam. 

Martins opta por relativizar, tal e qual o seu posterior Marte Um (2022), o fundamental é o afeto, manter os olhos abertos ao coração, o fracasso é uma construção social de aprisionamento de novas tentativas, o ir e vir como opção real, abrir-se ao erro, mas não ter medo de regressar, repetir ou tentar uma nova coisa. Nada está decidido, e o futuro não pertence a todos, mas é importante tentar manter-se de pé, e estar pronto para escrevê-lo com as suas próprias mãos.