Entrevista Glenda Nicácio

Entrevista de Glenda Nicácio para Igor Guimarães em 06/2020

 

Igor Guimarães – Glenda, você nasceu em Minas, mas foi estudar cinema no Recôncavo? 

Glenda Nicácio – Sim. Nasci em Minas Gerais. Sempre quis estudar teatro, mas os caminhos da vida me levaram ao cinema, e consequentemente ao Recôncavo. Muito mais por um desejo, do que exatamente por uma convicção.

IG – Quais foram as referências iniciais que te levaram ao cinema?

GN – Tudo foi um pouco um ímpeto de fazer alguma coisa. Na realidade, faço parte de uma estatística comum nas famílias negras do nosso país que me põe como a primeira pessoa na família a ter a oportunidade entrar na universidade. Como sempre quis teatro, pensei no cinema, a partir da minha visão teatral, pensava em atuar ou até mesmo voltar ao teatro no futuro. Entretanto, quando entrei no curso de Cinema, o teatro passou a ter pouco sentido na minha vida. Eram duas coisas completamente contrarias. 

No decorrer do curso de cinema, fiquei interessada especialmente pela linguagem, as aulas de linguagem cinematográfico da professora, amiga e mestra Angelita Bogado UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano). Eu que não tinha muita referência, não sabia muito da filosofia da imagem, tudo mudou a partir desse encontro. Pensar que todas as imagens produzidas são discurso, que não há nada natural, “tudo é fake”, perceber que tudo tem a sua objetividade foi muito revolucionário para mim. 

Ao deparar com a linguagem muda tudo realmente para mim. Como se você fizesse parte de um plano estratégico do mundo. Até hoje, o que mais me interessa mesmo no trabalho é propor linguagem, coisas que nunca viram, coisas que podem não ser reais, enfim… 

Na verdade, acho que este deslumbramento com a linguagem se revela nos nossos filmes. As coisas que mais nos animam são os debates para construir uma linguagem dos filmes 

Ao mesmo tempo, sinto também que este sentimento não é exclusivamente meu. É um pouco dolorido entrar num espaço, e perceber que há muito mais do que você sabe, não é? Mas você aprende, não é de todo negativo. Este “não saber” se observa também em produções periféricas. Entrar no mundo do cinema e não saber muito sobre questões mais teóricas te leva a este espaço com um olhar mais novo e mais interessante. 

Por outro lado, vejo uma crítica cinematográfica sempre contestadora desse lugar que chegamos. Não gostam porque não entendem, são outros corpos, outros lugares. Muitos questionam se algumas das nossas escolhas foram intencionais, e é muito agressivo este tipo de contestação. Nos vemos, às vezes, subestimados, nos perguntam se isso ou aquilo foi intencional. O que estou fazendo aqui afinal?  Todo e qualquer movimento que a câmera faz é intencional e nós sabemos disso. 

Também entendo que deve ser muito louco para as pessoas mais tradicionais no cinema, este processo recente que estamos vivendo. Lembro bem do último Festival de Brasília, quando estávamos com os meninos da favela do Salgueiro e o Vinicius Silva também, e ficamos refletindo sobre como deve ser muito louco para a galera mais antiga do cinema ver a gente nesse lugar. Deve ser chocante, eles estão acostumados com pessoas de uma câmera pesada na mão, uma câmera enorme que limita visualmente e especialmente. Por outro lado, nos somos de uma geração de pessoas que estão acostumadas a trabalhar a vida toda com o celular. Pede a um menino ou uma menina destes para fazer um plano na sala da sua casa, este plano não vai ser como aqueles chatíssimos que estamos acostumados, sairá algo novo. Na realidade, além de todas as diferenças sociais, étnicas, econômicas, raciais que existam, observamos um abismo que a própria tecnologia impôs a nova geração.  

Acho que algumas vezes existe uma pré disposição de não aceitar. Lembro de uma vez também no festival as reações do público ao assistir Temporada (2018). Todas as pessoas maravilhadas. Foi tão lindo que ao final da noite me aproximei dos meninos da Filme de Plástico e os felicitei pela noite, pela sessão, pelo filme. É um tipo de cinema que se propõe a discutir questões populares, mas ao mesmo empo com uma dinâmica cinematográfica que nos leva para este lugar, e isso, claro, incomoda. Há pessoas que conhecem a Historia do Cinema de cabo a rabo, e optam por dizer que não entendem essas coisas, por outro lado, pessoas que não são conectadas com o cinema- eu mostro para a minha mãe e para o meu pai que não estão nada antenadados- e sentem tocadas, há algo para estar atento. 

IG – Pensando um pouco no que se refere os teus filmes: Quais são as suas referencias como cinefilia e também na própria criação?

GN – Não sou muito boa com referências. Tanto eu como Ary não caímos nessa cilada, as pessoas perguntam qual é a sua referência para poder te comparar, se você não se enquadra nessa caixinha, é a sua própria forca. Não me sinto uma cinéfila profunda, para ser sincera.  

Eu e Ary temos uma metodologia no momento de montar o roteiro que parecem dialogar com que queremos fazer. Vemos alguns filmes e discutimos para ver o que temos em comum, o que estamos pensando. Vivo muito o que vejo, do que me move agora. Então, acabo pensando muitos nos filmes da Filmes de Plástico, Ju Almeida, Viviane Ferreira, Viviane Moraes e da Sabrina Fidalgo. Acredito que são os filmes que venho assistindo, nos festivais, vejo as reações do público e fico animada. Estes artistas dialogam muito comigo. Estamos produzindo juntos, ao mesmo tempo. Fortalecendo o cinema. 

De cinema internacional, que vi e gosto, me interesso muito pelo cinema da Ladine Labaki, uma libanesa. Gosto de muita coisa também, não é que não gosto, curto muito Bergman, Tarkovsky, mas a Labaki sempre alimenta, no Café mesmo usamos um pouco de referência o Caramelo, um filme bem bonito, sempre recomendo, ela atua, muitas mulheres em ação, o cinema dela tem uma ternura. Aqui no Brasil, além dos contemporâneos, atualmente tenho visto bastante do Cinema Marginal, a segunda vez que enlouqueci no cinema foi no Cinema Marginal Helena Ignez, Rogerio Sganzerla, Júlio Bressane, etc.  

A Helena esteve aqui em Cachoeira para o documentário dela, “A Mulher da Luz Própria|” (2019), e foi bem legal. Eu sempre achei interessante a pegada dos filmes dela, uma mulher branca subindo na favela, falando aquelas coisas revolucionarias, imagino isso agora? Uma exposição desse corpo branco, não é uma mocinha, o desconexo é ela, o que incomoda é aquele corpo branco. 

 IG – Alguns autores, teóricos e cineastas que discutem o cinema negro debatem sobre a constante utilização de estereótipos na representação do negro. Como você observa a utilização dessa categoria? 

 GN – Acho que no nosso caso, dependemos do ator. A depender do ator, os personagens podem ser muitas coisas. Acho que sempre temos essa dependência 

Como utilizamos muito os mesmos atores na escrita do roteiro, já pensamos em onde cada ator pode-se adequar melhor. Por exemplo, Arlete ( Arlete Diaz) que esteve presente em todos os nossos filmes, sempre esteve de algum jeito com a gente no trabalho No Até o Fim mesmo, tem várias falas dela, o flerte dela com o cara do bar, há umas falas que só são delas. Há várias coisas dela nos personagens. 

Tudo vai de acordo com a forma que você aborda. Lendo o roteiro, as vezes pensamos: temos de ter cuidado com essa ou aquela abordagem. Mas no fundo, tudo depende de como você propõe, da sua intenção ao propor.  

De todas as formas, para mim as coisas se completam conversando com o ator. Eles dão coisas que vão além do roteiro. Eu acho muito pouco isso de entregar o roteiro, e é esse o personagem, se já há nuancias entre o meu trabalho e o do Ary, imagina entre outras pessoas. Esse processo é muito interessante, sabe? Às vezes, o ator vem e te conta a sua percepção do ator e me questiona sobre como se portar. Eu sempre digo que não sei. Afinal esse é o seu personagem, há várias camadas nessa criação. 

Portanto esses tipos pré-moldadados ficam muito difusos, sem muita substância. As vezes se quiser propor o esforço de tipificá-los, talvez vamos encontrar em um outro caso. Agora, sem dúvida, o mais bonito do processo é construir características próprias para cada personagem. Claro, que há certos lugares comuns, como a mãe que perdeu o filho, a partir desta premissa, aciona-se gatilho sobre este lugar. 

Ainda que veja os personagens muito únicos, especialmente porque são todos referenciados ao Recôncavo, temos algum pontos que podem ser gerais, temos o personagem da mãe que perdeu filho, por exemplo, mas mostramos que ela sente falta de cantar Arvore do Edson Gomes, algo que só se escuta aqui. Algo muito nosso, da Bahia. 

Há várias possibilidades de representação, cada filme exige uma coisa, mas no nosso caso, acho que há muita subjetividade, personalidade, de como os personagens se sentem.

IG – A partir do que você disse sobre esta construção única, pergunto: Narrativamente, como se dá este processo de construção?

GN – Mais ou menos como te disse antes. A coisa de finalizar a criação com o ator. O roteiro indicar muitas coisas também, de maneira quase evidente. Além disso, nossa construção de equipe de trabalho que se repete também, um núcleo duro de trabalho. Todos se dedicam a entender com o seu próprio olhar o roteiro. Trabalhamos com um grupo bem criativo onde sempre propomos um ponto de partida, nossa função como diretora é apontar e direcionar, as vezes com grupos separados, outras não. Neste sentido, todos querem por um pouco de seu próprio olhar nessa construção. Todo mundo é muito “fominha”. 

Acho que isto ajuda na formação tão diversa dos personagens, há muitas variáveis que influem neste processo. Vamos trabalhar ausência, por exemplo, no Café com Canela , o eu e o pessoal direção de arte pensa na ausência com desenhos infantis nas paredes, uma casa sem criança, mas com desenhos para indicar que ele esteve naquele espaço, os meninos do som pensam no som com memoria, a direção de fotografia pensa numa câmera fixa num personagem e em outro, em constante, algo mais pulsante em outro. Todos numa linguagem diferente, buscando um conceito. 

 IG – Ainda sobre os personagens, te quero perguntar uma coisa: Qual a importância de personagens negros nos seus filmes?

GN – Ah! acho muitas coisas, são perguntas complexas de responder. Às vezes, terminamos por falar pouco. Cada momento significa algo diferente. Nesse contexto caótico, pandêmico, de notícias terríveis, que sempre existiram, mas nos últimos tempos estão especialmente assustadoras. Nesse momento, significa existência. Uma afirmação de existência e de possibilidade de celebração. Acho que isto é a coisa mais rica. Por isso também escolhemos disponibilizar os filmes no Youtube. 

Por exemplo, não sei, as pessoas veem o Café (Café com Canela, 2017), ou eu mesmo vendo o filme como espectadora, me sinto muito feliz por chegar nesse lugar. O filme é um abraço. As pessoas veem o filme, e se sente feliz, com vontade de abraçar, mandar mensagem de amor. Eu agradeço muito por isso. É um toque de afeto. Eu o vejo necessário.  

Num mundo onde vemos dor e muitas coisas más, também existe autonomia. Observar aqueles corpos todos, e pensar que são autônomos, todos preocupados em pagar as contas, mas não é essa a pauta. O tema é outro, como qualquer outro tema, como são os temas para os brancos. É um movimento de liberdade, único, de autocuidado. Um lugar de autocuidado. Difícil explicar, sabe? Ao explicar, parece pequeno. Encontrar um personagem que você goste, que seja negra, com cabelo enrolado, ou que seja gorda, ou que seja qualquer coisa que você se identifique. Aprende a ter carinho pela sua imagem, porque é você. Eu mesma aprendi a amar mais a mim mesma vendo filmes. 

As coisas são simples, mas com muita riqueza, muitos detalhes. As coisas parecem que transbordam. Não há muito este lugar de determinar. Uma ostentação de axé, sabedoria, ancestralidade, abundância. Há muito o lugar de compartilhar o que se tem.  

IG – Também podemos observar elementos que fazem parte da cultura afro-brasileira, comida, religião, etc. Por que estes elementos se repetem e se mostram importante na sua filmografia?

GN – Acho que esses elementos acentuam a forma de viver a cultura baiana, ou pelo menos da cultura baiana que temos acesso. Difícil atravessar a ponte de Cachoeira e não pensar em Oxun. Ver o rio e não sentir essa energia. Essas energias são muito fortes, estão impregnadas nas coisas, dizem muito. São energias de movimento, uma essência específica. Acho que nos filmes tentamos aproximar dessas energias por meio da linguagem, do ritmo. A partir dessa sensibilidade, ir se aprofundando. De certa forma, são temas universais, algo familiar, uma bebedeira, um churrasco, uma cervejas com amigos na noite. Experiências que todos temos. Queremos alcançar este lugar universal. 

Acho que dá para ser visto em vários elementos, tanto regional, como racial. Pode ser holandês e se identificar com a cultura, pode não pertencer a nenhuma religião de matriz africana e ser afetado por ela vendo o filme. 

Por outro lado, acho que quem se enquadra nisso muitos profundos, mas de maneira simples. Por exemplo, Igor, uma vez com a minha vó, vi o filme com ela e outros familiares, todos conversando, mas ao chegar na cena da Margarida na casa sofrendo, todos se silenciaram e se perguntaram o que acontecia com o personagem. Não soube como explicar, queria partir para uma explicação cinematográfica. Entretanto, minha tia veio e disse: “ Não, isso é como ela se sente”. Ao final, acho que é isso. O cinema que fazemos é um desejo de aproximar ao que se sente.

IG – Outro elemento importante na sua filmografia é a família, ou melhor, as famílias. Como você observa esse elemento na construção dos personagens dos filmes?

GN – Acho que essa pregunta é mais de roteiro. Algo mais de Ary. Não sei se me sinto muito cômoda por conta de não ter escritos os roteiros. 

Mas desde o lugar de diretora, pensando no Até o Fim (2020), no começo me pareceu um roteiro muito mineiro, a fofoca, os ressentimentos, fazer de conta que as coisas estão bem, quando não estão. Tudo o que há de mais controverso numa família mineira. Mas, uma outra amiga leu e disse que parecia sua própria família, algo mais da Bahia. Ao final, acho que é isso, famílias se tratam de famílias, e com as atrizes baianas ficam ainda mais regional. 

Acho que o Ary é um cara que gosta muito de trabalhos os encontros, então eu vejo que esses encontros familiares são muito importantes.

IG – Você acha que é diferente pensar cinematograficamente uma família negra?

GN – Acho que sim. Estas coisas dos bantus, das matriarcas. Esta coisa de construção das famílias nos mesmos pátios. A configuração da família que se constrói a partir de um mesmo terreno, de um território.  

Há uma configuração de família muito assim, a minha, por exemplo. Vejo bastante isso nos filmes, desse lugar. O cuidado também é importante. Cuidado com estas pessoas. Cuidado que superar a própria relação de laços sanguíneos. Acho que isto é algo que pertence muitos as famílias negras, e especialmente aqui na Bahia. Vamos fazer uma maniçoba, uma moqueca, uma feijoada. Uma comida coletiva. Isto é o que nos une. Igual a música, a liberdade de expressar, de falar. Muito da Bahia, uma possibilidade de fala. O amor em expressões as vezes agressiva. 

IG – Insistindo um pouco sobre o tema familiar, pensando exclusivamente na relação paterna e materna na construção dos dos personagens. Como você observa esse processo?

GN – Outra vez, acho que o Ary poderia falar mais sobre isso. Não é uma coisa que me chama muito a atenção. Não podia dizer exatamente o que é. Mas penso muito na morte da masculinidade. A morte desse homem, no pior sentido do termo homem. A morte da opressão. Uma paternidade do mundo. 

Se pensamos no materno, vemos Margarida e Violeta como mães, Roquelina que é avó, mas é uma avó-mãe na criação de Violeta, mãe do Emerson e no último filme só aparecem conversas. Acho que é uma relação oposta com relação aos pais, a figura da mãe proporciona um lugar de conforto, proteção. A mãe que nutre. 

O espaço também pode ser visto como uma mãe. O Recôncavo encana na figura materna para os personagens também. 

IG –  Uma boa parte da critica coloca a nova geração do cinema brasileiro num bloco único, o chamado Novíssimo Cinema Brasileiro. Como você enxerga essa nomenclatura?  

GN – Já escutei isso antes. Há muito do que falamos sobre a crítica ao principio da nossa conversa. Mas não sei, acho que, na verdade, há algo novo.   

Não se via negros com câmeras, assinando direção, escrevendo, protagonizando ou mesmo como espectador. É algo novo sim. Não é algo que foi vivido ou alcançado. Acho que é algo que esta sendo conquistador. Acho que há um frescor. Uma diferença que marcam estes abismos que falamos no começo. Abismos de gênero, raça, cor e da própria tecnologia. Vejo como um lugar de diferença. Um lugar que incomoda um pouco as referências porque não se procura uma precisão, uma resposta única. Se você pensa na gente, por exemplo, e na Filmes de Plástico, são cinemas parecidos, tem os seus pontos de encontro, mas há vários pontos de diferença, que são múltiplos. Eu acho genial isso, tanto o parecido, como o diferente. Respeitar os cinemas pelas diferenças.  

Já que ao mesmo tempo sempre existe uma necessidade de explicar e reduzir as coisas. Temos que entender que é essa estética do Novíssimo, depois o que é a estética do cinema negro contemporâneo, que é uma diretora negra contemporânea. Mas na verdade, quando se vê bem é impressionante a quantidade de convergências, estamos na mesma época, estamos pensando em coisas próximas, mas temos maneiras diferentes de pensar. Acho que é a particularidade que demarca esse lugar, há um lugar da comodidade. Não ha muita reprodução do mesmo. As pessoas estão cada vez mais distantes  no seu trabalho, e além de tudo a oportunidade de fazer de maneira diferente. Por muito tempo também isto foi muito exigido, é uma mulher negra fazendo um filme, ou isso ou aquilo. Acho que isso foi cada vez mais permitido.

IG – Outra nomenclatura que se utiliza é o cinema negro. Como você observa esta nomenclatura?

GN – Lembro de que quando terminei o primeiro filme, perguntei a uma amiga que estava mapeando as cineastas negras no Brasil se o que estava sendo feito era cinema negro. Ela disse, com certeza! Mas eu não tinha pensando nisso. Não sei se era um nome que eu automaticamente daria.   

Tudo depende da forma que você enxerga. O cinema que fazemos pode ser assim, muito por mim, pelas atrizes, atores, por narrativas, pelo lugar. Principalmente pela forma que as pessoas negras são vistas nesse cinema. Então sim, é o cinema negro. Esse é o publico que estamos acedendo. Esse é o publico que buscamos quando estamos realizando, prioritariamente. Dialogamos com as pessoas que sabem quem é Oxum, quem é Iansã. São estas pessoas que queremos dialogar prioritariamente, mas claro, as outras todas também são benvindas. Mas há outras questões, o próprio fato da direção compartilhada. Eu não sei se chamaria como um filme essencialmente negro, mas também é um filme negro. 

Acho que existe um filme negro, de fronteira, que ataca muitas coisas. Mas acho importante afirmar um cinema negro, numa mostra de cinema negro. Viemos muito tempo sem nenhuma referencia desse tipo. É um pouco repetitivo, há pessoas que o simplifica. Entretanto, ao mesmo se forma uma frente de produção negra tão diversa e tão incrível, e me pergunto como era antes. Era tudo muito tedioso, uns filmes de Sao Paulos, uns curtas que não entendíamos nada, e parecia que não entender era o mais importante, e o cinema se mostra como uma possibilidade mais acessível, mais direta. É importante colocar um cinema negro, com uma própria demarcação de espaço. 

IG – Para finalizar, uma pregunta sobre o futuro, como você enxerga o nosso futuro como negro no cinema, seja na realização, ou até mesmo na parte crítica?  

GN – Difícil, ne? Acho que é um trem que passou. No sentido de todos os incentivos, das políticas públicas. Me refiro a uma ideia de país, de geração. A ideia de possibilidades. Eu venho desse lugar, 2010, o boom dessas possiblidades, políticas publicas nacionais e regionais. Só pude fazer cinema por isso.  

Agora, vendo a UFRB, quem está entrando agora, vendo uma paralização, sem nenhum auxílio. Tudo sendo cortado. Não sei quem vai conseguir entrar, quem vai conseguir se manter neste regime político. Acho o papel de quem já está, é não parar. Há que seguir. Tentar expandir ao máximo. Acho que o cinema a ser construído nos próximos anos é de confronto, de lutar, mas espero que de afeto também. Ao final, o afeto também é uma forma, de criar lugares, de conforto, de segurança. 

Vejo como importante criar lugares. Estes temas sempre fizeram parte do cinema brasileiro, nunca foi fácil ser realizador. Entretanto, acho que agora vai se exigir uma articulação a nível estratégico, subversivo, inteligente. De pensar em como conseguir ter acesso aos poucos recursos, ou mesmo sem recursos. Pensar em como seria possível produzir diante de uma estrutura de caos total. Só posso pensar em bombas e gritos 

Acho que boicotar umas coisas, brincar um pouco. De repente, entrar numa onda como o Cinema Marginal. Pensar uma coisa e colocar em outro lugar. Assumir a histeria, assumir o caos. Não sei se narrativamente, mas nos modos de produção.  

As vezes pensamos muito na autoria como modo de direção. Mas para mim não é isso, uma grande parte da autoria está no desenho de produção. Acho que é nisto de filmar com 500 reais ou você vai esperar o melhor momento para filmar com 1 milhão, não existe isso, não existe o melhor momento. Acho que estávamos caminhando e pensando que ele existia, editais, políticas públicas de acesso aos recursos. Caiu tudo. Como diria Tia Ma estamos no momento de tirar o sapatinho, e colocar o pé no chão. 

Agora temos outro cenário. Possibilidades escassas. Acho que é essencial pensar nas formas de produção. Temos que seguir um modelo mentiroso, produtor executivo, direção. As pessoas pensam na direção com um certo glamour totalmente mentiroso. A verdade é que os diretores são produtores dos seus filmes. Se você não produz, ninguém vai fazer. 

Para muitas pessoas, o cineasta é aquela pessoal que está em casa, alguém te toca a porta ou manda um e-mail, tenho um roteiro aqui, e quero o seu trabalho, mas isso não existe com a gente. Sou eu que vou ao correio, assinar, vou aqui, vou lá. Algo do realizador, ser realizador. Que fazer cinema? A primeira coisa que você precisa aprender é produção, aprender a escrever um projeto, um roteiro. Tem que buscar uma união com pessoas que você confia. Não tem como, ninguém vai te tocar, tá tudo pronto, agora vem realizar o seu sonho.