Escarrar de um abismo noutro abismo: sensualidade, crime e vazio

Longa noite de prazer é um longa-metragem ficcional, em cores lançado em 1983 e dirigido por Afrânio Vital. O filme é protagonizado por Haroldo de Oliveira (Ivan) e Fernando Paliot (Ricardo), que interpretam uma dupla que, tendo cada um seus motivos, decidem se envolver numa espécie de contrabando de jóias. Sua missão é entregar a encomenda para um homem, num horário marcado para de noite. Até este momento chegar, Ivan e Ricardo envolvem-se em diversos outros crimes, numa sequência de impulsos que culmina com má sorte e tragédias.

A dupla formada por Ivan e Ricardo estrutura-se no esquema “negro pobre” e “branco playboy”. Ivan precisa de dinheiro para levar seu sobrinho, ainda bebê, muito doente, a um médico. Já Ricardo quer dinheiro para pagar dívidas e ir embora da cidade. Ivan questiona seu amigo sobre seus propósitos:

– Ainda não entendi porquê você entrou nessa jogada. Você é rico, não precisa de grana.

– O negócio não é bem assim como você tá falando.

Ricardo é quem inicia o filme, numa cena em que sua mãe está saindo para uma viagem e deixa um cheque para ele. Nota-se que o rapaz possui sentimentos ambíguos para com sua mãe, algo que podemos apreender como algo de Édipo, uma atração sexual. Os olhares, o roubo do colar de pérolas, os flashbacks que resumem a relação, mostram uma lascividade da parte de Ricardo. As relações que ele estabelece com outras mulheres são permeadas de referências à mãe, como na cena em que ele dá para a mulher que encontrou na praia o colar de pérolas que roubou em casa. Ricardo vê na jovem loira o reflexo de sua mãe.

Esse personagem possui um livro de Augusto dos Anjos, Eu, e recita as poesias em diversos trechos do filme. Se tomarmos esses textos como palavras que ecoam na personalidade de Ricardo, notamos seu desprezo e ranço pelo mundo, pelo outro, que não se importa, tampouco, com ele. Um vazio existencial se amarra às palavras de Augusto dos Anjos e à dupla Ricardo e Ivan, que vagam por um Rio de Janeiro sensual num dia e numa noite que se arrastam crime após crime, transa após transa.

Ivan parece se distinguir de Ricardo por ser mais cauteloso. Seu objetivo é bem estabelecido: curar seu pequeno sobrinho. Ele se irrita com as declamações poéticas de seu comparsa, jogando um estereótipo de playboy intelectualizado contra a crueza do dia, da missão, de suas ações criminosas. Ambos são embalados pelo sexo, que leva ao crime, como na sequência em que encontram duas mulheres na praia, vão para a casa delas, passam horas de diversão erotizada, e saem após roubarem algumas jóias. Esse primeiro crime resume os desejos de ambos:  prazer, conforto, boa-vida. A sensualidade de tal trecho por um lado pode parecer vazia de sentido para o filme, uma pausa erótica, mas por outro mostra como a sexualidade da dupla está intrinsecamente ligada com a criminalidade, ou mesmo como um passa tempo. Os “crimes secundários”, que ocorrem em série, facilitam e atrapalham o objetivo principal. São realizados para conseguir uma grana rápida, para abrandar o tédio da espera pela noite que não chega. E quando a noite chega, os crimes servem para consertar as sucessivas falhas.

Os desacordos entre a dupla geram confusões e contratempos. Quando decidem esconder o pacote com as jóias, esquecem onde enterraram na praia. Quando finalmente chegam ao encontro do cliente, que avalia as jóias, matam-no por um desacordo. Na fuga, reencontram as duas mulheres da praia, e numa espécie de sequestro levam-nas de novo para a beira do mar, onde ocorrem novamente cenas de sexo, que se prolongam (desnecessariamente, talvez). Novamente, Ricardo é tomado pelas lembranças de sua mãe, envolvida com um homem que, denota-se, não é seu pai. O colar de pérolas que o rapaz dá para a jovem da praia o remete à sua mãe, provavelmente repetindo um cacoete de que para conquistar uma mulher basta dar-lhe jóias.

A sequência noturna na praia é fundamental para consolidar uma noção de vazio, de que nada dá certo e que é preciso dar um fim em tudo. Até então dominando as duas mulheres, Ricardo e Ivan são surpreendidos por uma inversão, melhor dizendo, uma vingança. Ao forçar as mulheres a ter um momento de sexo lésbico, para satisfazer seus fetiches, as coagidas dizem que não estão a fim. Elas conseguem pegar uma arma e render a dupla, forçando-os a tirar a roupa e dançar como homossexuais, querendo inclusive que eles transem. Neste momento Ivan e Ricardo percebem que a noite precisa acabar, pois estão rendidos, forçados a fazer o que não querem nas mãos das mulheres, nessa ofensa à masculinidade heterossexual. Os dois retomam o controle da situação, prometendo encerrar a noite. Porém uma das mulheres some, sendo reencontrada afogada, talvez num acidente, talvez numa tentativa de suicídio. Essa situação limite conduz os personagens a finalmente saírem da praia.

Na estrada, se deparam com uma barreira policial. As duas mulheres fogem em direção à polícia, finalmente livres da dupla, mas provavelmente devendo explicações às autoridades. Na troca de tiros, Ricardo é ferido. Ivan manobra uma fuga com o carro. Já afastados da polícia, Ricardo morre no meio da estrada. Nada deu certo. O fim está próximo, finalmente. Ivan incendeia o carro e abandona a cena, no clarear do dia. Em outro ponto da estrada, melancólico, senta no meio da estrada, arma no chão, ao seu lado. Em posição fetal, é cercado por policiais. Eis o fim da longa noite de prazer: de tudo se fez, e nada deu certo. Sem dinheiro para o tratamento do sobrinho, sem o amigo, todo o plano falhou. Não por acaso um trecho da música Time, do Pink Floyd, toca diversas vezes no filme: o tempo de mora a passar, o dia é entediante, e é preciso perambular pela cidade. E quando o tempo finalmente passa, o homem que viveu um dia inteiro de crimes e prazer encontra-se diante do abismo de uma estrada vazia.