Thaís Vieira
* Cineclubista, pesquisadora e realizadora audiovisual. Contato: thaisvieira.edicao@gmail.com
Em 1909, João do Rio diz que “o porvir próximo do homem moderno seria o de tornar-se homus cinematographicus”, período em que o cinema trazia as novidades da modernidade ao meio do processo de modernização e urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Sete anos mais tarde, em uma crônica para O Paiz, intitulada “Pall Mall Rio — Foot-ball”, o carioca flanador das novidades brasileiras relata a emoção do futebol através do cinema:
“Não! Há de fato uma coisa séria para o carioca – o futebol! Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.”
No Brasil, a febre eram os “matchs” e registros de partidas de futebol nas três primeiras décadas do século XX. Filmetes como a “Entrega das Taças Aos Campeões Paulistas de Futebol”, em 1907, e “Match de Futebol Entre Ingleses e Fluminense”, em 1908, faziam a diversão nas salas de cinema no Brasil. Sessões com exibições extremamente barulhentas faziam o público, em sua maioria masculino, conversar entre si em voz alta e interagir dentro das salas. Alvoroço semelhante ao dos nobres homens das recém inauguradas arquibancadas de Laranjeiras, os quais levavam as mulheres de família, torcedoras de lencinhos, aos jogos de futebol. Dois lazeres importados da Europa durante o período da Belle Époque.
A sociedade brasileira, ainda com pensamentos escravocratas, barrou a entrada dos “moleques” nas salas de cinema e nos estádios de futebol. Apenas pessoas brancas, chamadas de “decentes” ou “de família”, podiam frequentar tais espaços. A construção de uma história do futebol no Brasil está ligada à luta anti-racista. O Bangu Atlético Clube, a Associação Atlética Ponte Preta e o Club de Regatas Vasco da Gama foram pioneiros neste processo. Em 1924, a Resposta Histórica vascaína foi um marco no futebol brasileiro por ser contra a exclusão de jogadores negros e operários dos campeonatos.
Enquanto o futebol abria as portas para jogadores negros, o então presidente Getúlio Vargas iniciava a Política da Boa Vizinhança, estratégia de abandonar a intervenção militar nos países da América e substituir pela diplomacia e aproximação cultural. Exportamos, através do cinema, personagens como Carmem Miranda e o malandro Zé Carioca. Fortalecer o conceito de nacionalidade brasileira a partir dessa afirmação da autenticidade da cultura popular culminou na criação da identidade do Brasil ligada ao “país do futebol”.
Diante de tais mudanças sociais, na década de 30 o jornalista Mário Filho inaugurou o primeiro jornal brasileiro dedicado aos esportes, o Mundo Esportivo. Pela primeira vez o futebol estava estampado nas capas, além de estar na boca do povo. Com tal popularização, pode-se observar que os “matchs” ou registros de partidas começam a dividir espaço com filmes dentro do universo do futebol.
Leônidas da Silva, jogador que já tinha aparições nos “matchs” como o “Copa Roca: Primeiro Jogo” (1939), dirigido por Humberto Mauro, atuou ou foi referenciado em diversos filmes, inclusive nos três primeiros longas com o tema sobre futebol do cinema brasileiro: Alma e Corpo de Uma Raça (1938), de Milton Rodrigues; Futebol em Família (1939), de Ruy Costa e O Gol da Vitória (1945), de José Carlos Burle.
O artilheiro da seleção canarinho, apelidado pelos europeus como “Diamante Negro”, glorificado nos campos e nas telas como heroi nacional, teve seu rosto estampado em publicidades de cigarros, relógios e até latas de goiabada. Foi homenageado por um chocolate que é vendido até os dias atuais. Driblando o racismo e matando no peito a atenção de todos os setores da sociedade em uma época que não existiam redes sociais e pouquíssimos registros dos jogadores, o Diamante Negro lapidou a estrada para os estrelismos da modernidade.
No longa Alma e Corpo de uma Raça, de 1938, dirigido por Milton Rodrigues, apresenta a trama entre dois amigos e jogadores de categorias inferiores do Flamengo que se veem apaixonados pela mesma mulher e decidem essa disputa em campo. Diversos jogadores do Clube de Regatas do Flamengo participaram das gravações da Cinédia, incluindo Leônidas, destaque da Seleção Brasileira na Copa do Mundo do mesmo ano. Um ano mais tarde estreou Futebol em Família, de Ruy Costa, o qual apresenta o personagem chamado Leônidas que é contra o tal esporte chamado de Futebol até seu filho fechar contrato como jogador profissional do Fluminense Futebol Clube.
José Carlos Burle, um dos fundadores da Atlântida Companhia Cinematográfica do Brasil S/A, foi forte entusiasta da cultura do futebol nas telas de cinema. Assunto já abordado nos cinejornais da Atlântida, em 1945 foi filmado O Gol da Vitória, estrelado por Grande Otelo no papel do craque de futebol Laurindo, fazendo referências ao ídolo nacional Leônidas da Silva. Um fato curioso das filmagens, descrito por Máximo Barro no livro José Carlos Burle: Drama na Chanchada, expressa a febre do futebol no país:
“Após quilômetros de negativo perdido porque o ator Ribeiro Martins jamais vira uma bola, Burle parou a filmagem para ensinar o ator. Ironicamente, quando correu para o primeiro chute, tomba e rompe o menisco.”
Futebol e Cinema: Dois caminhos com o pontapé inicial da elite brasileira e que o gosto popular dominou a posse de bola. Tal fervor do futebol no país e no cinema nacional no início do século passado tem caminhos que se cruzam a um ponto em comum, Leônidas da Silva, dando início a uma longa jornada de filmes e mostra sobre o esporte. “Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade”, disse Drummond em Sermão da Planície. Devoto da religião da bola ou não, ninguém sai ileso! E o cinema continua aí, refletindo essa paixão nacional.