Levante a Mão se Você é uma Alma Sebosa

Fátima Luiza

Quando foi lançado O Rap do Pequeno Príncipe Contra As Almas Sebosas em 2000, dirigido por Paulo Caldas e Marcelo Luna, eu tinha de três a quatro anos. Nunca tive a oportunidade de assistir ao filme quando criança ou adolescente, só vim assistir na minha vida adulta. Este filme foi escolhido para ser analisado aqui principalmente por dois motivos: seu título único usando a expressão ‘alma sebosa’ e a abordagem que essa expressão tem de nós criadas e criados na periferia do Recife.

No filme, conhecemos Helinho. Seu apelido em diminutivo, em que as pessoas escrevem e dizem -inho para representar carinho e amor por alguém, representa, ainda, alguém que tinha outra alma para nutri-los a qualquer momento. Conhecido como Pequeno Príncipe – apelido onde está a ironia de todo o documentário – ele é acusado de assassinar sessenta e cinco bandidos.

Num sentido mais amplo, Helinho é uma alma sebosa. De uma perspectiva sociológica superficial, ele é vítima de um sistema feito para premiar os ricos e os brancos.

Mas aqui reside a ironia: por que o pequeno príncipe está matando as almas sebosas? Porque do ponto de vista do significado, ele também é uma alma sebosa. No entanto, da perspectiva da vida da cidade, esse significado de alma sebosa é mais anticontextual do que realmente parece.

Para começar a falar sobre Recife e sua região metropolitana, ao qual o município de Camaragibe, onde se passa o documentário faz parte, à narrativa do filme, é preciso abordar, primeiramente, algumas questões relacionadas a ambas as situações. O determinismo em que se baseia a sinopse do filme é um movimento perigoso contra as questões sociais do Recife. Com o surgimento de um estado de espírito e governança liberal, os personagens retratados no filme – que são personagens reais que devo destacar novamente, é um documentário – vivem duas vidas diferentes na mesma área.

A região metropolitana do Recife é um espaço de poesia densa e violência profunda. Assim como qualquer outra grande cidade do Brasil, a raiz da violência está na desigualdade estrutural de raças e classes. Em uma cidade da região historicamente negligenciada do Nordeste, não é difícil encontrar histórias de indivíduos que alcançaram diferentes caminhos de vida. Um é um cara bom, o outro é um cara mau, é fácil de pintar. No entanto, com O Rap do Pequeno Príncipe Contra As Almas Sebosas, vai de forma mais profunda do que a pobreza à vista e a crescente desigualdade.

Vou começar pelo título do filme. A expressão “alma sebosa” é, pessoalmente, uma das minhas expressões favoritas para me referir a uma pessoa. Em um grupo de amigos, você pode chamar um deles de “alma sebosa” se ele fizer algo que você não gosta, como ser um pirralho, fazer algo errado (como trair seus parceiros, se meter em problemas financeiros com as pessoas erradas , bebendo e enlouquecendo; a lista continua); ou você pode se referir a alguém que é muito ruim, como um bandido, um criminoso de verdade, um assassino. Ou, em um nível mais profundo, refere-se aos políticos locais (e nacionais também).

Uma alma sebosa é uma alma indefensável. Não há como Deus ajudar uma alma que foi corrompida por qualquer tipo de sistema. Mas não é sebosa em sua natureza, é sebosa porque também é escorregadio. Ninguém vai pegar essa pessoa em qualquer nível.

Uma alma sebosa escapará de qualquer tentativa de ser presa com facilidade e, sinceramente, capricho. Não é fácil dizer. Eu cresci aprendendo que eu deveria estar longe desse tipo de alma, que eles não eram pessoas para estar por perto. Crescendo em um bairro de classe baixa em Recife, no final das contas, era fácil encontrar algumas almas por aí. Eles brincavam nas ruas até tarde da noite, reinando o caos e uma sensação de perigo. Eles costumavam estar à luz do dia também, mostrando quem eram, escorregando aqui e ali, criando pequenas situações caóticas.

O filme representa as mudanças em curso de uma cidade que cresce rapidamente em lugar nenhum. Foi lançado em 2000, último ano da década de 1990 e último ano do século XX. Retrata os estados da economia da década e do século: crescente desigualdade no custo de conseguir mais espaço para as cidades litorâneas crescerem, criando ainda mais diferenças entre os bairros ricos do Recife e os mais pobres. O conceito de classe média não estava muito consolidado no Brasil: uma base de trabalhadores da indústria enquanto consumidores de arte não era uma ideia popular. A ideia de um país de classe média e centrado na arte ganhou vida depois de 2002 com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Então, antes disso, o estado da arte foi definido por movimentos de nicho e tentativas de criar um sentimento nacional de apropriação da cultura em vários movimentos ao longo do século XX: da Semana de Arte Moderna em 1922 ao Movimento Tropicália na década de 1960 e os múltiplos carnavalescos festas em todo o país, não é fácil criar e colecionar um sentido nacional de arte com vários movimentos. E é aí que a ideia de nação e nacional lutam contra seus próprios significados. Embora a discussão aqui não seja essa, há um tom nacionalista para introduzir personagens únicos no filme. É como se os diretores se orgulhassem de apresentar pessoas que tinham caminhos de heróis e vilões como provenientes das mesmas origens. É uma periferia de super-heróis com seus camponeses fazendo coisas de super-heróis para sobreviver ao abandono do estado. Eles escolhem o que querem e, consequentemente, quem está a caminho também arca com as consequências. Entretanto, a nação aqui não é o Brasil como um todo – é a rua, a cidade. O rescaldo de um lugar revolucionário que vive despedaçando seu próprio passado derramando-o para os cidadãos como uma história orgulhosa de um resultado terrível.

É uma ladeira escorregadia pagar para tentar viver como alma. Mas se você conhece um, sabe do que estou falando. Apesar de hoje ser 2022 e esse filme ter 22 anos, a narrativa fica mais atemporal com o tempo. Existem algumas almas por aí. O ciclo é perigoso entre eles e entre nós que assistimos. Mas a pergunta real é: quem é a verdadeira alma sebosa?