Nos Anos 90, Ainda é Viável um Cinema de Invenção?

Adriano Del Duca

“O que seria do mundo sem imagens?

 Talvez tão melancólico quanto esse país”

Luis Rosemberg em “Imagens Imagens” (1994)

 

Entre 1993 e 1994, Luis Rosemberg Filho realizou uma série de oito curtas-metragens experimentais. Em vídeo, mesclando diversas técnicas de colagem, entrevistas, citações e locuções verborrágicas, Rosemberg viabilizou a continuidade de sua produção autoral, em meio aos estertores da indústria cinematográfica brasileira, subvencionada e ainda dependente.

Os filmes Agit-prop, Science-fiction, Experimental, Barbárie, e Pornografia, todos de 1993, e As sereias, Imagens e imagens e As máscaras, de 1994, formam uma série singular de reflexões sobre a virada vivida na sociedade e na cultura brasileira [e globalmente] entre o final dos anos 1980 e início dos 1990. A continuidade das estruturas autoritárias de poder, apesar da redemocratização, e o neoliberalismo conduzindo e reduzindo a ação estatal na cultura e sociedade em geral, impactaram os meios de produção cinematográficos. No entanto, Rosemberg, já habituado a produzir de forma absolutamente independente desde os anos 70, relacionando-se com o Estado mais através da censura do que como mecenas, chegou aos anos 90 com seu cinema vivo, inventivo e coerente.

Há uma unicidade e coerência evidente entre os filmes realizados por Rosemberg entre 1993 e 1994. Não apenas pelo uso reincidente de alguns planos de paisagem, de mar, aves, ou pela mesma voz feminina que narra, explica, confronta as imagens, ou ainda as montagens e sobreposições de recortes e vídeo que compõem cada um desses curta, mas o próprio núcleo de artistas e intelectuais que compõe a equipe técnica e criativa, bem como colaboradores e parceiros que são enunciados nos créditos. Assinados pelas produtoras Luz Produções de Cinema, Video e TV, a Formas do Olhar, a Extrema Produções Artísticas e o grupo Nave Terra, gravitaram em torno desses oito curtas-metragens figuras como Tito Rosemberg, Renaud Leenhardt, Jorge Mourão, Luiz Alberto Rocha Melo, Silvia Pamplona, Ingrid Vorsatz, Rubens Machado, Andrea Tonacci,  Moacy Cirne, Celso Marconi, Almandrade, José Roberto de Morais, Sergio Santeiro, Joel Yamaji, Sindoval Aguiar, Betty Fuks, entre outros. Trata-se de um conjunto de colaboradores que Rosemberg articulava a fim de manter o pensamento crítico, o trânsito criativo, e através do qual buscou manter alguma coerência com suas proposições de juventude, diante do vendaval político cultural que se deu no final dos anos 80.

Escrever sobre esses filmes do Rosemberg em meio a uma cinematografia dos anos 90,  é, de alguma forma, fazer uma dobra histórica. São curtas experimentais que pouco se aproximam de outros filmes desse início de década, distantes da produção de longa-metragem de ficção que marcaram (e justificaram) a ideia de retomada a partir de 1994. Mais próximos das experiências vanguardistas de vídeo-arte que transbordaram dos anos 80 para os 90, é interessante que essa produção intensa do cineasta tenha se dado justamente nos dois anos em que foram lançados menos longas-metragens no mercado nacional, o fundo do poço da crise que se desenvolveu desde o fim da Embrafilme. Rosemberg imprime nos 90 a acidez de seu cinema de imagem duplicada, sobreposta, deslocada, errática, verborrágico e ainda em franco diálogo com sua produção de juventude, refletindo a crise estética, política e econômica da sociedade e cultura brasileira, a partir da reflexão sobre os meios de comunicação, a produção e circulação social das imagens.

Nessa série de não-ficção Rosemberg delimita uma importante premissa que perpassa toda a sua obra: os regimes de visualidade construídos pela modernidade burguesa e reproduzidos nos meios de comunicação de massas ao longo do século XX, cumprem um papel de reprodução ideológica fundamental para o capital e o seu regime de exploração e de acumulação. Essa concepção sociológica próxima ao marxismo estruturalista de Althusser ou do construtivismo estrutural de Bourdieau, aponta para uma concepção filosófica do autor que se materializa em suas escolhas de modos de produção, de usos dos meios técnicos e suportes fílmicos, bem como da forma estética empreendida, em clara negativa ao clássico narrativo ou a ilusionismos.

A série inicia com Agit-prop, espécie de ensaio-documentário sobre o poeta Moacy Cirne e seu “Balaio Porreta”. O mais convencional de todos os oito filmes, baseia-se em entrevistas e depoimentos sobre a poesia de Moacy e pinta também uma crítica ao malfadado governo Collor e a sua política (anti) cultural, fazendo, a um só passo, um elogio da poética marginal e uma crítica ao modo de produção cultural gerido pelo Estado. Através da reflexão que levanta sobre o Brasil e a expansão dos meios de comunicação de massas, indica o posicionamento político de seu cinema e de sua poesia imagética.

As colagens, típicas na produção de Rosemberg, tentam expor as vísceras da indústria cultural brasileira – as revistas, a representação iconográfica do poder, a violência e a miséria midiatizadas – enquanto seu texto fulmina reflexões antropológicas e filosóficas sobre a importância da arte independente, das vanguardas, das estéticas dissidentes. O curta, que aparentemente faz apenas um panorama da agitação cultural e artística de Cirne, torna-se ele próprio uma peça de agit-prop, inserindo a discussão crítica aos meios de comunicação de massas brasileiros que desenvolverá nos filmes seguintes.

Science Fiction dá mais um passo no sentido da crítica a presença massiva da imagem televisiva. A crítica à banalização da imagem e o consequente esvaziamento estético, espécie de paródia adorniana, é o centro desse segundo curta. Os sentidos assumidos pelo discurso midiático em um contexto de proliferação de imagens e de informações pasteurizadas, e, principalmente, a percepção da classe social que se expressa através desses meios, consolidando espaços de poder através do jornalismo e publicidade, são o alvo de Rosemberg. Costurando referências que vão de Orson Welles a Strindberg, o cineasta preenche sua reflexão prolixa com uma silhueta do mapa do Brasil, dentro do qual confundem-se imagens de telejornais, colagens de mídias impressas, condensando a malha ideológica dos meios de comunicação de massas na última década do século XX.

Experimental parece uma continuidade de Science Fiction, Rô direciona definitivamente a artilharia contra a televisão e a sua expressão na sociedade brasileira. Seus intelectuais orgânicos, suas estrelas e vedetes, o telejornalismo e a teledramaturgia, todos os personagens que ocupam a televisão são elencados com a frieza da citação textual, moldadas como recortes de caixa de texto dos tabloides, e justapostos ao discurso reticente do autor sobre o teor do conteúdo veiculado e o papel cumprido por esses pretensos artistas. Rosemberg dá nome aos bois, expõe suas figuras, e taxa uma imagem negativa ao discurso e ação política da maior estrutura de produção audiovisual do país, a Rede Globo.

Em Barbárie o cineasta concentra a crítica ao uso da imagem do corpo da mulher como forma de atrair atenção, olhares, público, lucro. O prazer escopofílico da nudez, o voyeurismo de massas, a fragmentação e fetichização do corpo em sexo, formas de gerar prazer visual ao olhar moldado pelo machismo, pelo homem e sua empresa de vender imagens. A televisão e a indústria pornográfica são desvelados como partes de um mesmo sistema setorizado pela moral, mas que extrai riqueza da desvalorização da mulher, de sua objetificação e hipersexualização, mercadoria rápida para um mercado acelerado, do erotismo consumível. A sequência de colagens de vulvas, pernas, bundas, e todo o gestual que conforma o entretenimentos pornográfico, das mais pudicas fotos de anúncios de revistas, aos mais explícitos registros do sexo, gera um curto circuito no discurso do filme, sempre contrapostos ao texto de Rosemberg que questiona a imagem, indaga a banalização do corpo e do desejo, o esvaziamento da dimensão erótica e libidinal do corpo para alimentar o consumo, mediatizar o sexo em lucro.

Pornografia fuça em um outro campo nefasto do uso midiático da imagem: as imagens de políticos. O curta abre com um longo texto analítico sobreposto a jocosa face de um homem branco (político) adereçado com um cocar Yanomami e um sorriso podre de quem não vale o que come. A voz over invade a banda sonora irrompendo uma crítica ao uso político da imagem como farsa, como ficção de sujeitos inexistentes mas que, ao modo da estetização fascista, forjam a imagem da política como um campo de virtude.

Acossado por décadas pela censura do regime militar, Rosemberg parece espreguiçar-se sobre os democráticos anos 90, afia a sua linguagem indigesta, montando recortes de jornais com imagens de icônicos autocratas como Sarney, Romeu Tuma, Antonio Carlos Magalhães, Médice, Figueiredo, em alusão a estetização fascista. Se em Barbárie, Rô dá nome aos bois do negócio televisivo e critica a erotização da imagem feminina, em Pornografia o cineasta recoloca sua crítica aos modos de mostrar da imprensa brasileira, mas aqui referindo-se ao agenciamento midiático a seus clientes político-partidários, e a contínua reposição dos marcadores ideológicos do poder através da ficcionalização e espetacularização da política oficial.

As sereias, realizado já em 1994, segue a linha de questionar os modos de funcionamento da comunicação de massas e a escopofilia presente nos métodos publicitários de produzir imagens. A erotização, padronização e exploração da imagem feminina, e a construção de uma visualidade coletiva machista e misógina são analisadas pela perspectiva do trânsito ideológico patriarcal que se retroalimenta, financiado e veiculado pelos mesmos setores econômicos e grupos políticos que exploram econômica e politicamente as classes subalternas, justamente os consumidores dessas imagens, um “público” hipoteticamente livre pra escolher o que vê na tevê. Numa sequência vertiginosa de recortes e colagens a partir de imagens femininas erotizadas, a locução conduz uma analogia entre o ilusionismo e a sedução, a ideologia e o controle.

Imagens Imagens, ao sobrepor locuções jornalísticas sobre as movimentações partidárias pré-eleitorais à um poema sobre o sentido das imagens televisivas e a visualidade moderna, enuncia a televisão como a “náusea do capitalismo”, construindo um império de imagens de consumo. As vídeo-montagens sobre recortes de jornais e revistas são conduzidas por uma locução feminina que lê o manifesto poético de Rosemberg e sua busca pessoal por uma imagem da realidade, desmagnetizada do poder alucinante da ilusão capitalista, desfetichizada. O poema é quase um desabafo diante das impossibilidades de expressão de uma imagem crítica em meio a uma avalanche diária de maquiagens que cobrem de beleza a melancolia da vida real, um domínio imagético que devassa a sensorialidade do corpo reduzindo-o a um olhar efêmero e superficial que subjuga o desejo, realizando-o apenas no que é erótico ou tangível pelo valor de troca.

Finalmente, As Máscaras segue a linha da crítica a indústria cultural figurada pela imprensa e televisão brasileiras e abre denunciando que os massacres de Carandiru, Vigário Geral, Acari, dos Yanomamis, e a chacina da Candelária, expressões históricas da violência do Estado contra o povo no período de redemocratização, aparecem na mídia como notas de acontecimentos isolados, fadados ao esquecimento. O que ocupa diariamente as páginas, as telas, as capas de revistas, são imagens de tolices, frugalidades, pra desviar a atenção dos problemas ao invés de enuncia-los. Desfilam na tela colagens a partir de recortes de colunas sociais, esse apanágio aristocrático que sobrevive em uma imprensa colonizada e desinteressante. Desvela-se a falsa sensação gerada pela imprensa de que a sociedade vive diariamente o sublime, o prazer, e anula-se a possibilidade de revolta, de insatisfação com o real, já que diante de nós está um mundo repleto de beleza, riqueza, prazer e felicidade. O curta destaca os olhares de mulheres ricas que, petrificadas nas imagens de luxo, miram o vazio, não olham nada, como uma recusa do real.

Quando refere-se ao período após 1994, a historiografia do cinema brasileiro apega-se a ideia de retomada, como se tivesse sido interrompida uma certa continuidade da produção cinematográfica nacional, compreendida pela produção de longas-metragens subvencionados. Mas o recorte que utiliza o cinema industrial e o lançamento de filmes longos de ficção, legitimados então como “o cinema”, como o parâmetro da continuidade ou paralisia do cinema nacional, deixa na sombra [subexposto, pra usar um termo fotográfico] toda uma cinematografia que também pensou a imagem e o projeto de país, que se posicionou claramente no espectro político nacional.

Observo uma linha de continuidade entre a produção marginal, a vídeo-arte, o experimental, e um certo cinema de não ficção que despontou no Brasil durante os anos 2000. Diversos experimentalismos com a imagem, com o suporte e com os usos  da linguagem cinematográfica que desaguaram no cinema digital realizado nas últimas duas décadas, acompanham os gestos estéticos e políticos que estão na obra de Rosemberg e toda uma geração de realizadores que sobreviveram sufocados aos anos de chumbo, e que seguiram produzindo cinema no contexto democrático, sem fazer concessões aos novos modos do poder e de acesso aos recursos e meios de produção cinematográficos. A continuidade da produção por fora das estruturas viabilizadas pelo novo regime político, e ao mesmo tempo dissonante em relação aos caminhos buscados pelos cineastas de sua geração, atualizam o cinema de Rosemberg ao contexto dos anos 90. A transição democrática incompleta manteve vivos os regimes de dominação burguesa, ainda que escamoteado pela democracia, no âmbito do Estado, e por regimes visuais condescendentes ao capital, no âmbito estético.