Luciane Carvalho
O documentarismo brasileiro tem como tema recorrente a discussão da história de nosso país, percorrendo as narrativas mais variadas: do ufanismo à crítica das vozes dos vencedores, dos grandes eventos a uma história subterrânea, do alinhamento ao “discurso oficial” à relativização. Bem sabemos o poder da narrativa cinematográfica, capaz de tanto questionar quanto de confirmar as percepções da história. Aqui tomaremos o exemplo do longa-metragem documentário Rádio Auriverde, dirigido por Sylvio Back e lançado em 1991.
A filmografia de Back percorre a ficção e o documentarismo, e em ambos os casos é possível perceber uma tendência do cineasta de tratar com olhares críticos temas relacionados à história do Brasil, muitas vezes espinhosos e incômodos. Um exemplo é A guerra dos pelados, longa de ficção lançado em 1971, que desenvolve sua narrativa sobre o traumático e pouco lembrado episódio da Guerra do Contestado, ocorrida na região de Paraná e Santa Catarina na década de 1910. Os temas da luta popular pela terra, do Estado versus sua população civil, o messianismo e a pobreza da população rural e interiorana confrontam com uma ideia de Brasil pacífico e uno em plena ditadura militar, um período marcado justamente pela violência do governo contra vozes da oposição. Lembramos também Lost Zweig, de 2002, outro longa de ficção, sobre os últimos anos de Stefan Zweig, escritor judeu austríaco que, em buscando refúgio no Brasil em plena Segunda Guerra Mundial, depara-se com a ambiguidade do governo de Getúlio Vargas, numa face muito próxima do nazi-fascismo.
Rádio Auriverde é resultado de uma extensa pesquisa de imagens de arquivo, muitas quais inéditas. São imagens registradas para cinejornais e filmes de propaganda brasileiros e norte-americanos que apresentam os soldados brasileiros na campanha contra a Alemanha nazista na Itália. Vemos os pracinhas da FEB em diversas situações, desde o embarque e desembarque dos navios até o extremo da situação de guerra, dos corpos mortos em combate. São imagens que nos fazem refletir sobre o absurdo da condição humana nos conflitos armados e, no caso da FEB, discutido no documentário, refletimos ainda sobre os motivos que levaram o Brasil a entrar no teatro de guerra italiano, tão distante do contexto nacional.
Fugindo do uso da imagem documental como registro dos fatos e descolando-as dos discursos originários da propaganda e da notícia, Back subverte uma dita “memória oficial” sobre a FEB. Para tanto, utiliza-se de alguns recursos de linguagem, dos quais destacamos a voz narradora, que direciona tudo para o sarcasmo e o deboche do empenho de guerra brasileiro. Tal intenção afirma-se nos depoimentos de Back sobre o filme, que pretendia minar a narrativa de heroicidade e bravura dos expedicionários, o que, inevitavelmente, recai também nas forças armadas brasileiras e em Getúlio Vargas. A destruição de mitos da história do Brasil, por sinal, é tema recorrente na filmografia de Back, como em Guerra do Brasil, República Guarani e Yndio do Brasil. A “ousadia” de Back resultou num filme polêmico, que levou a protestos dos veteranos de guerra, como na pré-estreia em Curitiba e na exibição no Festival de Brasília; também manifestaram-se na imprensa, com cartas publicadas em jornais, denunciando a maneira insensata com que o diretor reconstruiu a experiência da FEB na Itália, diminuindo sua importância. A crítica de cinema também não comprou o discurso de Back, lançando opiniões negativas. Os festivais tampouco reconheceram a obra, que recebeu apenas uma menção honrosa pelo trabalho de pesquisa no Festival de Natal. Nos festivais de Brasília e Gramado, a polêmica superou os méritos. “O mais odiado filme da história do cinema brasileiro[1]”, afirmou Back em carta do Jornal do Brasil.
O documentário inicia-se com Carmen Miranda performando sua música mais conhecida, Tico-Tico no Fubá, num excerto do filme Sing with the Stars, produzido Army Pictorial Services, unidade do exército dos Estados Unidos dedicada à produção de filmes de propaganda. Segue-se, então, imagens de soldados da FEB num momento festivo, dançando e tocando instrumentos musicais, enquanto lemos os créditos do documentário. Tal justaposição confere uma ideia de brasilidade ligada à descontração e diversão. Enquanto Carmen Miranda é usada como símbolo de uma brasilidade caricata e servil aos EUA, os soldados em festa parecem contradizer sua missão solene. Esse pode ser considerado o fio condutor do documentário: a presença brasileira na Segunda Guerra Mundial seria algo caricato, uma aberração, um desperdício de vidas e ineficaz em termos de estratégia militar.
A sequência seguinte, onde as imagens mostram as passeatas brasileiras em protesto contra a Alemanha nazista são acompanhadas no áudio de uma narração de rádio relatando os primeiros momentos da “aventura” brasileira na Itália. Essa seria a “Rádio Auriverde”, um mimetismo das transmissões realizadas pelo exército nazista visando desmoralizar as tropas inimigas, narradas em diversas línguas, incluído o português. Tal construção narrativa é justamente o que nos leva a questionar: trata-se de um documentário? Em qual camada de sentido encontra-se Rádio Auriverde? Temos imagens de arquivo, “testemunhas da história”, que são montadas com uma voz narradora que subverte essa noção de testemunho, criando um revisionismo histórico detrator das experiências de guerra, especialmente dos soldados. Seria essa voz narradora, na verdade, um elemento ficcional, ou estamos diante de uma narrativa híbrida, que de uma só vez estilhaça os cânones do documentário e da história?
“Os americanos não querem!”, repete uma voz masculina simulando um sotaque alemão, expondo a subserviência do Brasil aos Estados Unidos. Sugere que, caso não entrasse no esforço de guerra, o Brasil teria toda sua frota mercante afundada pelos Estados Unidos. É uma referência aos eventos que lançaram nosso país numa posição de inimigo da Alemanha, quando navios foram afundados por torpedos nazistas, resultando em centenas de mortos. Reiterando uma teoria da conspiração já refutada, de que os norte-americanos atacaram a frota brasileira para forçar uma tomada de posição, Back toca naquela que deveria ser a discussão séria em torno da FEB. O que Getúlio Vergas deveria fazer diante da situação do Brasil ter navios afundados pela Kriegsmarine? Quais as vantagens e desvantagens de juntar-se aos aliados? São questões de resposta complexa. O jogo geopolítico da América Latina em relação aos interesses dos EUA é a peça central para compreender. Nesse ponto, Rádio Auriverde desvia a atenção para o soldado raso e inexperiente, jogando sobre ele a culpa pelos mortos em combate, e não num sistema de poder terrível que força seres humanos ao absurdo da guerra.
A sequência em que é mostrada a recepção de Orson Welles, Walt Disney e Douglas Fairbanks Jr., combinada na trilha sonora com uma moda de viola sobre a luta pela “causa da liberdade”, além de imagens de soldados embarcados em navios, reitera a contradição entre a entrada na guerra e a subserviência aos Estados Unidos. Afinal, o Brasil lutaria por uma necessidade de revidar os ataques marítimos alemães ou aceitando enviar e sacrificar parte de sua juventude em troca de financiamentos? Talvez a opção em utilizar uma moda de viola seja justamente para sublinhar um perfil populacional brasileiro, o homem simples do campo, enviado à guerra para lutar pela liberdade, sem se dar conta que ele próprio vivia sob uma ditadura, enquanto jovens de classes sociais elevadas burlavam o recrutamento e escapavam da convocação. Poucos minutos depois, o filme utiliza uma música caipira em inglês – country –, quando as imagens mostram o desembarque das tropas brasileiras, que passarão por treinamento. Back parece nos sugerir que o treinamento não era apenas militar, mas sim uma americanização, afinal os EUA vestiriam e alimentariam os soldados não ao estilo brasileiro, mas sim norte-americano.
A voz narradora da ficcional Rádio Auriverde anuncia as condições do pracinha brasileiro: “desorganizados, sem liderança, mal vestidos e mal alimentados; doentes de corpo e cabeça; sem instrução e sem treinamento. É esse o exército de Caxias, como se autointitula a FEB, que o Brasil envia para o Teatro de Operações na Europa”. Tal soldado, figurado como incapaz e incompetente, passa pelo treinamento, ironizado pela contradição entre o narrador, que anuncia que os soldados estão aprendendo a manejar armas, e pelas imagens, que mostram um momento de diversão dos soldados que jogam dardos num painel. Back utiliza frequentemente o recurso de unir imagens das tropas em momentos de descontração, descanso e festas para sugerir a falta de seriedade e comprometimento com a guerra. O espírito alegre dos soldados, sempre sorridentes para as câmeras, denuncia a aventura irresponsável de enviar a FEB para uma guerra que, segundo o filme, já estaria vencida. As cenas de combate mostram os soldados sem agilidade, tranquilos, com pouca intimidade com as armas, vagando pelas estradas italianas. Entretanto, muitos são takes de treinamentos, simulações e cenas posadas. Quase não vemos o inimigo alemão, os “tedescos”. Porém vemos mortos e feridos. Estariam os brasileiros lutando sozinhos?
A Rádio Auriverde, “a voz da verdade”, interrompe os cinejornais, destruindo a narrativa original informativa. São os momentos mais ferinos, degradando as memórias heroicizadas da FEB. Mesmo a conquista mais celebrada, a tomada de Monte Castelo, é referida como uma operação menor, sem importância estratégica. As ações importantes de fato seriam realizadas pelo exército norte-americano, restando aos brasileiros o “rescaldo”. O fim da guerra na Europa e o retorno dos pracinhas ao Brasil são motivos para massivas comemorações nas ruas. Entretanto, Back sugere que foi uma vitória a reboque, às sombras dos norte-americanos. Os mais de quatrocentos mortos brasileiros não são de forma alguma justificáveis. Não são heróis de guerra, mas sim vítimas da irresponsabilidade varguista. Um preço a ser pago pelo Brasil para conseguir indústrias estratégicas.
Estamos diante de um documentário ou uma ficção? As imagens são documentárias, testemunhas dos acontecimentos. Porém a banda sonora deturpa a história e a memória, não deixa claro que a Rádio Auriverde jamais existiu, sendo uma referência às transmissões nazistas para baixar a moral dos aliados. Ao utilizar tal recurso de linguagem, Back não reitera os discursos nazistas? O diretor deixa de lado o a crítica ao inimigo. Por vezes até esquecemos que esse inimigo era nada menos que a terrível Alemanha Nazista de Hitler. Brasileiros foram mortos por nazistas, e nazistas foram mortos por brasileiros. Certamente não há mito que seja inabalável, mas Sylvio Back de fato tocou no mito do heroísmo da FEB de modo irresponsável. Os méritos da extensa pesquisa de imagens de arquivo e da criatividade certamente são ofuscados por essa distorção histórica.
[1] “Festival”. Jornal do Brasil, Caderno B, p. 7. 18/07/1991.