Andréia de Lima Silva
E tem cinema no Maranhão? Quando eu ouço essa pergunta (e já ouvi um tanto de vezes), dependendo da minha predisposição e humor, eu personalizo a resposta. Mas, geralmente, eu escolho a opção carregada de ironia: mas a gente tem até coca-cola, imagina se não ia ter cinema! O fato é que o desconhecimento (e preconceito) sobre a produção cinematográfica maranhense é gigantesco até mesmo dentro do Estado. Lá fora, quem tem um pouco de conhecimento sobre o nosso cinema, cita o Festival Guarnicê de Cinema – que está entre os mais antigos do Brasil –, ou mesmo o nome de, no máximo, uns dois cineastas. Porém, as últimas duas décadas têm sido fundamentais para a consolidação do cinema maranhense por meio da produção de longas-metragens de ficção, já que esse tipo de produção ganha mais espaço nas salas de cinema e, portanto, atrai mais público. E, dentro desse segmento, a comédia é o gênero de maior sucesso. E, no Maranhão, o grande fenômeno do cinema local foram os filmes da saga Muleque té doido! protagonizada e dirigida por Erlanes Duarte.
A saga que mescla dois gêneros (aventura e comédia) se constitui de quatro filmes: Muleque té doido! (2014), Muleque té doido 2: a Lenda de Dom Sebastião (2016), Muleque té doido 3: mais doido ainda (2019) e Muleque té doido 4: morreu Maria Preá (previsto para ser o último filme da saga e ser lançado no segundo semestre de 2022). Os dados e números ligados aos filmes revelam um cenário pulsante e extraordinário que é completamente desconhecido fora do Maranhão. Os três filmes lançados levaram quase 100 mil pessoas às salas de cinema do Estado e possuem mais 16, 6 milhões de visualizações no YouTube. Foi também a primeira vez que um longa maranhense ganhou espaço na TV aberta, na programação local da afiliada da Globo no Estado, a TV Mirante. Muleque té doido 2 foi exibido como programação local no Supercine. Era uma forma de promover o lançamento nas salas de cinema do terceiro filme da saga.
Tanto sucesso talvez atribua-se a uma feliz junção entre elementos narrativos e recursos cinematográficos recorrentes dos blockbusters hollywoodianos (aos quais o espectador já está familiarizado, afinal temos uma bagagem de algumas décadas de sessão da tarde, não é mesmo?), porém com elementos reconhecidamente regionais, tais como: o cenário (a cidade de São Luís), citação a lendas locais e fatos recentes conhecidos na capital maranhense, vocabulário permeado de muitas expressões e gírias, menção a elementos da cultura popular e trilha sonora com artistas locais. No enredo dos três filmes, os protagonistas, um quarteto atabalhoado (a la Trapalhões), têm que salvar seu povo, ora da Serpente Encantada (no primeiro filme da saga) ora do Touro Encantado (no segundo e terceiro filmes). Os filmes seguem o passo a passo da jornada do herói com elementos regionais e incorporando os efeitos especiais recorrentes no cinema americano, porém com a qualidade técnica possível para aquele contexto de escassez de recursos. O resultado são filmes que possuem uma potência imagética que se conecta com o público de forma sinestésica, pois ao mesmo tempo que ele reconhece o enredo (e, por isso, se sente confortável ao assistir) ele se reconhece na tela por meio do cenário, das histórias e dos modos de falar. Essa mistura de sensações entre o olhar e o sentir enriquece a fruição do espectador maranhense.
Quando Muleque té doido! (2014) estreou nos cinemas maranhenses eram poucas as produções locais que ocupavam as salas de cinema e, geralmente, esses espaços eram possíveis apenas em salas voltadas para filmes considerados independentes. As salas de shopping dificilmente cediam espaço para produções locais. Para conseguir espaço no Cinesystem, por exemplo, o diretor teve que insistir muito. À época, três cinemas da capital maranhense exibiram o primeiro filme da saga. Com poucas semanas em cartaz, o filme superou a bilheteria local de blockbusters hollywoodianos que estavam em cartaz na mesma época, tais como A culpa é das estrelas (2014), Malévola (2014) e X-Men – dias de um futuro esquecido (2014). Em algumas salas de cinema, o longa ficou três meses em cartaz – fato incomum até mesmo para grandes sucessos do cinema brasileiro ou mundial. Estima-se que cerca de 15 mil espectadores foram às salas para ver o filme. O fenômeno logo caiu no gosto popular e, também, foi parar no mercado informal, nos camelôs da cidade. A estimativa é que foram vendidas por volta de meio milhão de cópias do filme. Devido ao sucesso, os atores receberam uma homenagem na Câmara Municipal de São Luís.
Dois anos depois, o diretor lançou o segundo filme da saga Muleque té doido 2 – a Lenda de Dom Sebastião (2016). Com o ótimo êxito do primeiro longa, MTD2 já chegou ocupando a maior parte das salas de cinema da capital maranhense e, também, ganhou espaço nas salas da cidade de Imperatriz (segunda maior população do Estado). Dessa vez o diretor teve que registrar o filme na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e, com isso, os dados foram catalogados de forma mais precisa. MTD2 é possivelmente a maior bilheteria de um filme maranhense em salas de cinema (quase 70 mil espectadores). Foi a 25ª maior bilheteria entre os filmes brasileiros lançados no ano de 2016 (com a ressalva de que foi lançado apenas no Maranhão).
O terceiro filme da saga, Muleque té doido 3 – mais doido ainda (2019), trouxe números menos expressivos em bilheteria (12.471 espectadores), porém conseguiu diversificar nos dados. O filme foi lançado em salas de cinema no Estado do Pará e contou com participações especiais de grandes comediantes da cidade de Imperatriz (MA) e Belém (PA). A trajetória de sucesso da saga também possibilitou que o segundo e o terceiro filmes fossem contemplados com financiamento da Lei Estadual de Cultura. Assim, a produção pôde investir no elenco e na parte técnica da obra, gerando um outro patamar de produção para o cinema do Estado. O quarto e último filme da saga, Muleque té doido 4 – morreu Maria Preá, tem previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022 e será distribuído nacionalmente pela O2 Play o que possibilitará que a obra ganhe espaço em salas de cinema de outras capitais brasileiras. Contará também com a participação especial do Trapalhão Dedé Santana – um dos maiores nomes da comédia brasileira e nominalmente citado pelo diretor como uma de suas principais influências e inspiração para a produção de seus filmes.
A relação entre o gênero comédia e o cinema: um desgaste desnecessário
Em quase 130 anos de existência das primeiras exibições cinematográficas, uma pauta recorrente é a tensão desnecessária que se criou entre uma ideia de cinema “de arte” versus cinema “de entretenimento”, como se um anulasse ou inviabilizasse o outro. O purismo de quem alega a superioridade de um em detrimento do outro pressupõe uma hierarquia entre os gêneros, cabendo às comédias um papel menor quando podemos observar que a história e os números mostram com clareza que a comédia é A responsável pelo maior número de público nas salas de cinema no Brasil, tornando, portanto, viável economicamente a sua manutenção, já que como bem sabemos as últimas décadas têm mantido a margem de mais de 70% das salas de cinema brasileiras dominadas pelos filmes americanos, devido essencialmente ao domínio das majors, tais como Universal, Paramount, MGM, Fox, Warner, Disney, etc.
Em um mercado dominado pelo produto estrangeiro, fazer polêmica entre os gêneros diminuindo aqueles que têm maior apelo popular é um desgaste completamente desnecessário e improdutivo. No Maranhão, os grandes nomes do cinema local (e são muitos e de gerações distintas, claro) não ficaram ofuscados porque o público passou a consumir as comédias locais. Pelo contrário, ao ter consciência da existência de um cinema criativo por meio das comédias locais é possível que o espectador se dê conta que há uma rica produção por trás que vai além do entretenimento puro e simples.
Não há como diminuir um tipo de produção que lota as salas de cinema para consumir Cinema Maranhense. Se levarmos em consideração que o Maranhão ainda não possui um cenário favorável para a produção cinematográfica – já que não dispomos de dispositivos legais específicos para financiar o setor, não temos curso superior na área e nosso IDH é o segundo pior do Brasil – e ainda assim consegue movimentar o setor com produções populares significa que há algo importante acontecendo ali e que merece atenção. Antes de Erlanes Duarte já havíamos tido uma experiência de grande popularidade com o filme Ai que vida! (2008) do cineasta maranhense radicado no Piauí, Cícero Filho. E depois do lançamento dos dois primeiros filmes da saga MTD, houve um lançamento no Sul do Maranhão que movimentou a cidade de Imperatriz (MA). O filme Crepúsculo – boca da noite (2015) foi produzido pela Companhia de Teatro Okazajo e levou milhares de pessoas para as salas de cinema de um shopping do município.
Ocupar esses espaços, que antes eram reservados quase que exclusivamente para produções estrangeiras, é um ato político na medida em que expõe nossas mazelas, nossa criatividade e, também, nossos costumes para um grande público. Se o cinema popular de comédia do Maranhão vem conquistando territórios antes inexistentes é porque grandes cineastas permitiram que esse caminho fosse possível. São nomes que vão desde a geração do super 8 da década de 1970, tais como Murilo Santos e Euclides Moreira, passando por cineastas premiados como Frederico Machado e Francisco Colombo e chegando até nomes de uma geração mais recente que têm levado o Maranhão para inúmeros festivais pelo mundo, como, por exemplo, Arturo Saboia, Breno Nina, Lucas Sá e Mavi Simão. Os novos nomes que surgem e lotam as salas de cinema, como os de Erlanes Duarte, Cícero Filho e da Companhia de Teatro Okazajo, são um reflexo de um movimento maior que enaltece e valoriza a nossa cultura e as nossas produções. Então, da próxima vez que me perguntarem “e tem cinema no Maranhão?” eu já posso responder com propriedade. “Tem. E leva milhares de pessoas às salas de cinema”.