O visível e seus borrões: a nostalgia mortal em Anganga e A Morte Branca do Feiticeiro Negro

Na cena inicial do curta-metragem, uma paisagem melancólica de nuvens cinzas – que anunciam a presença de chuva no horizonte – é atravessada pelo vôo agitado de um urubu, ave conhecida por se alimentar da carne de animais mortos em estado de putrefação. Essa ave, que se movimenta desorientada e precede a apresentação dos créditos iniciais do filme, é um gesto que apresenta a morte como prenúncio de regeneração. Em A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro-Andrade, 2020) a pulsão em direção à morte é movimento incerto, assim como o vôo solitário do urubu no céu, acompanhado da promessa do sopro gélido de uma tempestade. A materialidade fílmica é impulsionada através da potência disruptiva do grito silencioso da carta de Timóteo, negro escravizado que morreu em Salvador em 1861, e que no filme torna-se personagem.

 

Frame de A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020)

 

A única evidência sonora no curta-metragem é Eká, música que abre o álbum experimental Anganga de Juçara Marçal e Cadu Tenório (2015). A música possui, assim como a abordagem de Rodrigo Ribeiro-Andrade da carta de suicídio redigida por Timotéo, uma estrutura rítmica que nega a pronunciação melodizada do texto. Através de loops sobrepostos e ondas de distorção que criam rasuras nos ciclos da matéria, memória, cultura e o que é entendido comumente como vanguarda, a faixa autoral é um exemplo brutal e expandido do gesto do álbum como um todo. Assim como a palavra “Perdaõ”, traçada sobre a tela preta, é um primeiro indício do conflito áspero que subscreve a narrativa fílmica. Com base no poder simbólico das manifestações musicais afro-diaspóricas, a estratégia de engendrar uma ruptura e reconfigurar os territórios do visível e do invisível através do som, ruído e silêncio é a base material que aproxima as obras. Uma elucidação de como o cinema negro brasileiro estava se movimentando, e continuaria a se movimentar, através de dispositivos que incorporam a qualidade estrutural das formas musicais à imagem em movimento.

Ambas as obras se ancoram entre o tributo e a transmutação. A Morte Branca pela abordagem visceral da carta de suicídio de Timóteo como um registro histórico único e intransferível de busca por liberdade. E Anganga pelas reinteerpretações de canções afrobrasileiras tradicionais conhecidas como cantos de congado e vissungos (os cantos de pessoas escravizadas que trabalhavam nas minas de diamantes em Minas Gerais). Sobre os vissungos, em 1982, é lançado o álbum O Canto dos Escravos, talvez a maior documentação sonora dos cantos praticados por negros escravizados em território brasileiro, onde os cantos são interpretados por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca da Portela. O Canto dos Escravos cumpre o papel de reconstrução histórica e preservação, desobrigando quaisquer obras, que viriam depois com o intuito de abordar esses ritmos, de uma representação fidedigna do patrimônio cultural. Em Anganga, a abordagem experimental dos cantos de congado e vissungos cria uma atmosfera imersiva, que expande os dispositivos técnicos dos cantos originais. Ruídos ásperos são incorporados à tradição musical afro-diaspórica.

                                        Capa de Anganga (2015)

Esses rastros ruidosos da memória, que atravessam a carta escrita na terceira tentativa de suicídio de Timóteo e as imagens de texturas sobrepostas do período pós-abolição em A Morte Branca se aproximam mais de um exercício de redescoberta do que de reconstrução histórica. O poder simbólico das imagens das condições brutais da escravidão, em sua maioria de corpos negros em situação de trabalho, também são ruídos que se manifestam formalmente, assim como as improvisações vocais expandidas e os gemidos eletrônicos de Juçara Marcal em Anganga. O ruído aparece, nas duas obras, como um mecanismo para propor uma nova reconfiguração do material de origem. Através de uma hibridez nostálgica de abordagem do patrimônio histórico, as obras se colocam em diálogo constante com os arquivos originais, reconfigurando tons e texturas para expandir a experiência.

Frame de A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020)

 

No curta-metragem, cenas atuais se misturam aos arquivos históricos abordando o presente como uma eterna reconfiguração de um passado concreto. O filme constrói texturas e camadas nas imagens através de pequenas intervenções no filme fotográfico. As imagens, assim como a carta subscrita na matéria fílmica, são vestígios de uma existência assombrada pelo banzo – a nostalgia profunda que levava os negros ao suicidio -, assim como o vôo incerto do urubu no início é acompanhado pela tempestade. Com exceção de uma cena que se repete: a de um homem negro que olha diretamente para a câmera e depois leva uma das mãos ao pescoço. Uma performance angustiada de sua própria morte. Os corpos negros apresentados no filme não possuem nome, endereço, tampouco identidade. Com exceção de Timóteo, que possui nome, mas não possui corpo. Essas personagens são construídas como sintomas de uma época. Nada mais que rastros – ou ruídos – que pairam através das rasuras da memória. Assim como as batidas sujas – ou ruidosas – das músicas do álbum que se afastam de uma essência nostálgica para apostar em fórmulas rítmicas que subvertem, sobretudo, uma concepção pura do ato de rememorar.