Marise Urbano
O centro do mundo está em todo lugar.
O mundo é o que se vê de onde se está.
Milton Santos
A frase do mestre Milton Santos sublinha o sentimento da cineasta negra e periférica que se provoca a partir do seu lugar de escuta no mundo, Eu. Então, falarei em primeira pessoa, cansada de estar entre a multidão de nós, que não me representa, que apaga o meu eu, e, na sombra de uma gramática do ele (homem). Utilizarei o nós quando for um sentido que toca ao grupo racial/social a que pertenço.
Ouso fazer uma pequena alteração na citação acima, para atender ao tema que tratarei neste artigo, ficando assim: “o centro do mundo está em todo lugar. O mundo é o que se escuta de onde se está”. Tornou-se, para mim, imprescindível trocar o “vê” pela “escuta”, ainda que seja compreendido o vê como ponto de vista, a utilização deste termo reforça muito do que nossa sociedade é: visocêntrica. Não precisamos ir longe para concordar com isso, basta olhar a lista de aplicativos de redes sociais em seu aparelho celular.
Estimular a escuta é provocar a visão, ou, uma boa provocação a hierarquização dos sentidos. Não precisamos de referências bibliográficas para concordar que dentre os sentidos apreendidos: visão, audição, olfato, paladar e tato, – a ordem fica ligeiramente igual a que fiz aqui (provocativamente), o que reflete a forma como os sentidos estão hierarquizados, com uma leve alteração entre os três últimos sentidos citados.
É complexo e um tanto problemático pensar numa verticalização dos sentidos, sendo que possuímos a possibilidade de ter todos ou a grande maioria destes sentidos, logo, não nascemos com o sentido hierarquizado no corpo, esta marca é construída ao longo da vivência em sociedade; e, em que sociedade vivemos?
Sendo esta sociedade visocêntrica, a visão vem primeiro, ainda que nosso talento para a música seja indiscutível, a escuta ocupa uma segunda posição, a partir daí vem os demais sentidos.
Sobre o cinema, é sabido por todes, que, este, reflete e dialoga, numa parceria, estritamente íntima (ou não!?), com a realidade de uma sociedade. Sendo a nossa sociedade visocêntrica, não estaríamos longe de ter um cinema pautando na e pela imagem. O que vai refletir, diretamente, na construção do roteiro, na elaboração do projeto executivo, na contratação e na valorização dos profissionais etc.
De que cinema estou falando? Do cinema que nos foi apresentado pela tv aberta – importante abrir um parênteses, aqui se instaura uma questão geracional, pois aqueles nascidos no século passado, como eu, tem muito das referências dos filmes exibidos pela Globo e Sbt, portanto, um cinema americano de hollywood, fecha parênteses. Neste mesmo cinema, a representação do negro era baixissima; quando o era feito, acontecia em papéis cómicos, ou dos vilões, ou dos bobos etc, nunca assumindo posições de reis ou principes, – exceto no filme “Um Príncipe em Nova York” (Coming to America, 1988, John Landis), com o ator Eddie Murphy.
Darei aqui um salto, vamos até o cinema negro, nosso cinema negro atual, as discussões em torno da representatividade ecoaram fortemente neste século, assim como a revisão da fotografia e da maquiagem para peles negras, também, discutimos sobre produções com profissionais negros, porque, não bastaria ter elenco negro, fotografia e maquiagem para peles negras, se o olhar não fosse de uma equipe igualmente negra.
Todas as questões que foram, são e estão por vir são de extrema relevância para (re)construção do cinema e audiovisual. No entanto, a pergunta veio em minha inquieta cabecinha: quem problematiza o sonoro negro no cinema ou o som em uma afroperspectiva para o cinema?
A partir dos zumbidos das cigarras, – não como metáfora poética, mas como descrição da realidade, pois as cigarras começaram sua cantoria no mato atrás da casa vizinha – Enfim, continuemos com os zumbidos das cigarras amigas, e com uma busca sobre as sonoridades. Observei a reprodução sonora nas produções do cinema negro, mas que não é um problema nosso, é um campo, infelizmente, de pouco cuidado quanto a construção narrativa desde a pré-produção, é, de bom tom salienta, que me refiro as produções com quase nada ou nada de orçamento (que não seja próprio do coletivo/direção/produção), que ainda é uma realidade para a maioria dos filmes do cinema negro.
Nosso povo traz como marca a potência da oralidade, a escuta atenta aparece como estratégia de sobrevivência e o silêncio alia-se ao que se deve saber onde pode se pronunciar. Se trazemos marcas na memória corporal de um povo sonoro, quanto e como dessa herança podemos trazer para pensar o som no cinema? Sim, temos produções que dão conta dessa sonoridade, e são belíssimas, mas vamos pensar numa maioria, em que isso não acontece. Então, o que precisamos fazer?
Problematizar.
É dai que nasce o Cinema Negro Sonoro, inicialmente para ser uma mostra de cinema negro pautado no som e depois passou a ser um coletivo de estudo, que, em um ano, vem buscando em suas pesquisas coletivas e individuais e em suas práticas profissionais, experenciar suas hipoteses.
Como em qualquer pesquisa, o coletivo Cinema Negro Sonoro, não pretende ter as respostas corretas, mas experimentar o sonoro desde a produção, sendo, esta etapa, atendida pela construção narrativa da direção sonora que será construida durante a pré-produção, ao lado das direções. As experimentações precisam ser consideradas, para saber se dão ou não, certo.
Existe um grupo racial / classe social a que é permitido experimentar, errar e arriscar. Para a gente (negres/ perifericus), tudo soa como se tivéssemos apenas uma chance e dela não podemos deixar passar, não podemos errar, isso é violento e nos adoece, nos culpamos, e, no final, o que estamos fazendo conosco? Reproduzindo um método perverso do colonizador, nos diminui para caber; nos impor utilizar as suas marcas para estar presente nos espaços em que insistem em ditar as regras. Isso basta!
Precisamos vestir nossas vestes, olhar nossos olhos, escutar com a ancestralidade e produzir com todos os sentidos. Somos completude, corpo e alma, coração e mente.
Podemos deixar, lá na encruzilhada, a mala da herança colonizadora que separa razão de emoção. Somos o todo em sim e carregamos a multiplicidade de nós em nós; projetamos ecos dos que vieram antes de nós; tatuamos os sinais do nosso território em nosso molejo; carregamos patuás dos ancestrais; caminhamos com mandinga e escutamos com sabedoria.
Nessa silhueta da vida, o coletivo Cinema Negro Sonoro se configura como “uma encruzilhada no sentir, pensar e fazer o som no Cinema/Audiovisual a partir de uma perspectiva afrocentrada, em diálogo com uma escuta ancestral”.
Por fim, e não é o fim, apenas o começo, é preciso romper com a perspectiva que não atende ao que nos atravessa, e, reorganizar os sentidos numa relação horizontal. Talvez seja necessário, antes de qualquer produção, se posicionar na encruzilhada da existência, para sentir, depois pensar e depois prosseguir. Acreditamos que o som numa afroperspectiva, dentro do cinema negro, é o sonoro que inter(pele) nosso lugar no mundo.