Victor Velloso
* crítico de cinema, curador e realizador. Redes sociais: @matadordecangaceiro
“O futebol, penso eu, é um espelho da sociedade. Assim como estamos perdendo uma maneira brasileira de fazer filmes, estamos deixando para trás uma forma brasileira de jogar. As escolas de futebol estão imprimindo uma ideologia de destruição, em vez de criação. Hoje os meninos aprendem, sobretudo, a impedir o jogo do adversário. Daí não surgirem mais Pelés ou Garrinchas, expressões puras da invenção, capazes de desmontar, eles sim, qualquer defesa. Parece-me uma clara metáfora de que esse país está sendo formado para brecar o desenvolvimento da criatividade. Em lugar do craque, temos a celebridade e o culto ao dinheiro. O futebol é igualmente um núcleo de produção simbólica. As regras estão aí há mais de 100 anos e todos as conhecem. Elas dão origem a um padrão de convivência dentro do campo, com espaço tanto para o individualista, como para o sujeito que trabalha em função do outro. O bom jogo é a harmonização dessas diferenças. Paralelamente à obediência às leis, há também as constantes tentativas de transgressão, coibidas pelo juiz, o único vestido de negro. Nessa tensão, equilibra-se o espetáculo que mais apaixona os brasileiros.” p.95-96 (COLEÇÃO APLAUSO – MAURICE CAPOVILLA)
Subterrâneos do Futebol (1965), de Maurice Capovilla, é uma investida no caráter social desse esporte que “é uma paixão estranha que toma conta do brasileiro”, como alerta a narração de Anthero de Oliveira. O filme procura refletir sobre características concretas da realidade futebolística brasileira, desde as condições materiais e sociais dos atletas até os depoimentos dos torcedores que assumem suas paixões por razões diversas.
Mas se Subterrâneos do Futebol pretende esclarecer parte das paixões suscitadas pela maravilha que é “um misto de ciência e arte”, suas exposições trazem consigo o caráter desigual da sociabilidade no esporte, desde a origem social da maioria dos jogadores até as diferenças salariais entre aqueles que escolheram a modalidade como profissão.
No filme, há menção de um jovem, o Luiz Carlos, que interpretou Pelé (no filme de Carlos Hugo Christensen, O Rei Pelé, de 1962), o que escancara o culto à grande figura do futebol e à personalidade. Mas como diz a narração: “Nem todos podem ser Pelé. Nem todos podem ser milionários que nem Pelé.”
Eis aqui um ponto de partida na proposição da película de Capovilla que compreende criticamente o processo de construção da “ilusão dos grandes salários” que atinge os jovens jogadores. Está claro que as questões centrais aqui estão diretamente ligadas à forma de consolidação do esporte e sua relação direta com as classes sociais, seja através da ideologia fomentada pela mídia, no caso dos grandes salários, ou da popularização do esporte a partir das periferias. Luiz Henrique de Toledo (1), antropólogo, explica parte da popularização do esporte a partir desta questão particular da região onde pode ser praticado:
“Nota-se que, em alguns contextos específicos, como no Brasil, a crescente popularização do futebol e a sua transformação em esporte de massa estiveram estreitamente vinculadas não somente à constituição de um campo profissional e midiático, o que evidentemente ocorreu, mas, concomitantemente, aos modos como esta prática esportiva foi sendo apropriada nas variadas formas de praticá-lo e vivenciá-lo, como na várzea, por exemplo, futebol amador que por muito tempo guardou uma estreita relação com a prática profissional.” p.140.
Com experiência prática e discursiva, Capô, que possui uma trajetória como jogador de futebol profissional, reconhece as relações entre a dialética do jogo com a sociedade, as implicações diretas do esporte na vida social e como o jogo reflete as condições sociais brasileiras. Contudo, é necessário que haja no documentário um recorte na representação desse universo de paixões e refregas. A partir de uma breve sociologia do futebol em seu contexto particular, Subterrâneos do Futebol é mais ambicioso que aparenta. Se por um lado, essa abordagem sociológica pode ser criticada por não ser capaz de dar conta da totalidade dos processos que revela, por outro, ela consegue atravessar uma série de questões estruturais de sua temática central, o futebol.
Para conseguir organizar essa construção, a partir de uma análise estrutural e das falas dos atores sociais aqui presentes, a estrutura do filme assume um certo didatismo: a exposição inicial de como o futebol é uma grande paixão nacional, difícil de ser explicada e sua grande capacidade de “se adaptar a psicologia do brasileiro”. Em seguida, mostra como “nasce a vocação” para o futebol, desde a infância, pois nos bairros pobres, operários, nos campos “cercados pelos edifícios, fábricas e várzeas, eles encontram o desabafo”. A transição para a realidade concreta do futebol, acontece quando o narrador deseja sorte a um jovem jogador, esperando encontrá-lo em breve nos “grandes gramados”.
Em uma espécie de terceiro momento da projeção, vemos Zózimo: ex-jogador e bicampeão mundial com a seleção brasileira, esquecido pela mídia e sociedade por conta de uma acusação de suborno. Aqui, não apenas por capricho ou contraste, aparece uma característica de Capô, o gosto pelos derrotados, fracassados e perdedores. Está claro que Zózimo teve sua glória em campo, mas não foi capaz de usufruir de nada disso e permanece no ostracismo. Desta forma, o gesto do narrador de desejar sorte ao menino recém saído da várzea, (o nome se explica, no caso de São Paulo, por serem montados às margens dos Rios, como explica PVC em “Escola Brasileira de Futebol”) e esperar que o vejamos nos grandes gramados, é uma síntese dessas dificuldades percorridas por indivíduos que foram marginalizados a maior parte de sua vida, por uma sociedade que se agigantou e criou periferias com profundas exclusões sociais.
A questão de como o recorte ontológico é realizado, priorizando uma abordagem materialista diante de uma questão permanentemente espetacularizada pela grande mídia, como o futebol, especialmente no contexto brasileiro, pode ter influência, também, com a participação de Vladimir Herzog, que assina como “chefe de produção”, mas teve influência direta em todo o processo do filme.
Se a estrutura parece demasiadamente simplória para dar conta de uma exposição que não se atém à uma reflexão epistemológica desse grande evento, o mérito vem justamente da maneira como Capô organiza a estrutura do documentário a partir de questões socialmente relevantes para seus atores sociais, sem necessariamente desenvolver uma solução para cada menção. Um exemplo disso é a demonstração de como o jogador de futebol é uma mera mercadoria na ordem capitalista que tomou conta do futebol, sendo facilmente substituível, com grande concorrência, um assalariado. O cineasta não precisa elaborar digressões maiores para que o espectador sinta a desumanização desse processo. Aliás, um dos entrevistados comenta sobre como o jogador de futebol deixa de ser uma pessoa “comum, para ser objeto, inclusive de domínio público”. Ou seja, seu objeto fílmico entrega material suficiente para que ele possa estruturar uma linha de argumentação, e esse é o mérito de Subterrâneos do Futebol, condensar os tópicos sem perder a racionalidade desse processo.
Outra característica fundamental na obra de Capô, são as constantes relações entre questões essenciais da vida humana com o jogo, seja por sua trajetória como jogador de futebol, como pela leitura que faz das relações sociais, a dinâmica entre o esporte e a sociedade se torna um elemento especial em sua cinematografia.
A partir de sua compreensão dos processos sociais, o cineasta trabalhou ao longo da carreira a relação entre o indivíduo e a sociedade, a maior questão epistemológica e ontológica da sociologia, e como isso é inserido, modificado e deturpado pela lógica do mercado, pela indústria, material e cultural. Nesse sentido, é interessante notar que a visão de Capô é tanto a celebração do futebol, quanto a problematização de seu funcionamento concreto. Menos a idealização que poderia ser provocada pela proximidade da objetiva com os jogadores, a bola, as reações dos torcedores, uma certa tendência formal herdada do Canal 100 (especialmente na fotografia de Armando Barreto, que vinha do canal), e mais a tentativa de enxergar a realidade do futebol a partir da realidade concreta.
Desta forma, é possível notar que tanto em Subterrâneos do Futebol como em suas obras de ficção, Bebel – A Garota Propaganda (1968), Profeta da Fome (1970), Vozes do medo (1972), a tônica passava pela dualidade entre o sistema e o indivíduo, sendo outra característica que o diretor mantinha como centro dos conflitos de suas obras. Contudo, Capô não recorre aos conhecidos argumentos funcionalistas para defender o sistema como uma questão abstrata e intangível, ele se debruçava na particularidade de seus objetos para compreender o cenário estrutural de suas temáticas. Ele trabalha com a compreensão das dificuldades de se manter em uma sociedade moderna, em constante mudança e formas de repressão, a partir dos desafios de seus personagens. Assim, Subterrâneos…, não propõe apenas a exposição dos problemas enfrentados por seus atores sociais, mas também a demonstração de como essa realidade está diretamente ligada a uma conjuntura econômica e social muito maior que seu recorte pode dimensionar. Esta problemática no documentário é parte de seu êxito, já que é capaz de tensionar uma dialética entre os problemas de escala macro e micro.
Quando o projeto passa a se encerrar nas discussões mais próximas de cada jogador de futebol, expondo as entranhas do processo de profissionalização e tentativas de sucesso na carreira, uma pergunta passa a se desenhar como espécie de advertência: “É bom ser um jogador de futebol?” A resposta é clara: “Não é bom ser jogador de futebol”. Essa afirmação não é feita pelo filme, mas por Pelé. A partir disso, o filme consegue fazer algo importante para contextualizar o debate no campo do trabalho: esclarecer que a profissão de jogador de futebol, não se diferencia tanto do trabalho assalariado comum. Em sua exposição, coloca como problema central das questões dos profissionais do futebol: a rotina exaustiva de treinos, a dificuldade de chegar nos “grandes gramados”, como uma lesão pode fazer você ser substituído rapidamente. A síntese disso está na fala do narrador: “Por trás da bela jogada está um problema humano escondido do público. A imprensa concorre para a criação dos mitos, mitos que valem dinheiro. Na realidade, o jogador é um operário de vida curta. O jogador é uma mercadoria, facilmente perecível, seu valor é estabelecido pelo interesse dos clubes, dos seus dirigentes. O jogador ganha pouco, arrisca muito e é uma fonte de renda”.
Capô deixa claro, através da montagem, assinada por Luiz Elias, que essa particularidade ideológica é fomentada pela grande mídia, por uma indústria cultural que fomenta a fama e o sucesso a partir da idealização dessa vida. Se Adorno alertou que as biografias tomariam os lugares das obras, Capô procura a subversão da biografia mitológica que a grande mídia constrói. “A imprensa concorre para a criação dos mitos, mitos que valem dinheiro. O jogador é um operário de vida curta. O jogador é uma mercadoria, facilmente perecível”.
Contudo, outra coisa que chama atenção é que o texto do filme, de certa forma, assume que tais atitudes das grandes empresas de mídia, corroboram para a manufatura da opinião pública. Mais do que apenas uma interpretação da lógica capitalista por trás do futebol, o filme é um esforço de compreensão do fenômeno desse esporte, a partir de um recorte materialista, que é capaz de homenagear e criticar na mesma medida, assumindo seu encantamento pelos “dribles espetaculares”, sem se envergonhar de problematizar o que não está visível através da idealização midiática.
Entre o eufórico torcedor e as imagens de violência nos estádios, o filme se encerra como se soubesse que a própria paixão condiciona sua alienação, uma chaga que o subdesenvolvimento carrega com o orgulhoso fardo de que “quase sem espaço, precisando transformar um pedaço de chão à beira do abismo num latifúndio, aprendeu a driblar”. A referência ao anjo das pernas tortas é quase uma ironia diante de uma realidade onde o brasileiro está mais próximo de “As Duas Faces da Moeda” (1969), de Domingos de Oliveira, onde um cara-ou-coroa decide o futuro. Independentemente do resultado no jogo, a pergunta segue: “Quem ganha com tudo isso?”
“Noutros séculos e noutras culturas, observam-se ritos, jogos, festas que servem de natural exutório aos impulsos da afetividade e graças aos quais os homens podem imaginar, ao menos por algum tempo, que assinaram um pacto com o mundo e reencontraram a si mesmos. Opera-se desse modo uma purgação, aplacando-se tais picos de febre sem que estes tenham que recorrer, para se exteriorizar, seja a uma via explosiva, seja a um disfarce utilitário ou racional, e por isso mesmo funesto para qualquer possibilidade de justa ação prática ou reflexiva. Mas em nossos dias e em nossas civilizações não é mais possível encontrar escape confessável para tais impulsos subterrâneos senão do acaso ou sob a forma edulcadora de criações artísticas que cessaram de deitar raízes profundas no entusiasmo coletivo”. LEIRIS, 2001.
(1) Toledo, L. H. de (2001). Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira (1982-2002). BIB – Revista Brasileira De Informação Bibliográfica Em Ciências Sociais, (52), 133–165.