Esse tema me atravessa de uma maneira muito profunda. Dentro da tradição iorubá, Nanã, é a orixá mais antiga, ela está nos primórdios da vida no Àiyé (Terra). Foi através do barro dado por ela que os seres humanos foram moldados. E eu tenho a honra de ser filha dessa mãe. Sou filha da detentora de toda memória humana, por isso, falar de memória e ancestralidade é tão caro pra mim.
O cinema negro brasileiro já passou por diversas fases. Inclusive vou trazer um parênteses em relação a isso. Enquanto pesquisadores, sempre nos cobram a definição e história dessa especificidade do cinema, acho super válido, afinal nem todos sabem realmente o que é. Mas já existem diversos pesquisadores estudando sobre esses assuntos, não podemos deixar que nos tratem como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Esse cinema tem evoluído de maneira acelerada e deixar de acompanhar essas mudanças para falar dos mesmos temas, é uma estratégia política branca e ocidental de que não merecemos nos aprofundar em questões filosóficas, antropológicas, sociológicas, porque precisamos estar sempre provando a existência das nossas vidas e de nossos fazeres.
Agora, voltando….
Na última década, podemos acompanhar um aumento de filmes que protagonizam equipes, personagens e narrativas negras no Brasil. Grande parte ainda são curta-metragens, de baixo custo, sem grandes financiamentos. Mas é perceptível que os temas e os gêneros têm sido muito mais diversificados. Saímos da caixinha da denúncia: filmes que denunciam situações de racismo ou de consequências do racismo. Temos tido filmes que protagonizam outras narrativas do que é ser negro no Brasil, para além das dores. E, por consequência da mudança dos pensamentos e focos, temos nos aprofundado mais nas nossas existências individuais e coletivas. Temos falado sobre nossos desejos, sonhos, fantasias, medos e um tantão de outros sentimentos e afetos através do cinema.
Tenho percebido um maior número de pessoas preocupadas em registrar a história de suas famílias e comunidades. Essa é uma preocupação super válida, porque o medo de perder nossos mais velhos nos faz entender que, como diz o narrador, escritor, historiador, etnólogo e poeta Amadou Hampaté Bâ, do Mali: “Na África, cada ancião que morre, é uma biblioteca que se queima”. E em nossas comunidades e famílias negras/racializadas não é diferente. Dependemos quase que 100% da tradição oral, aquilo que é passado de geração para geração.
Infelizmente nossas últimas gerações tem sido moldadas por uma forma de vida que não comporta conseguir lembrar com riqueza de detalhes histórias de nossos antepassados sem algum tipo de tecnologia em mãos. Perder essas pessoas/bibliotecas, seja para doenças ou para própria morte, é perder memórias valiosíssimas de tudo que sabemos sobre quem nós somos. Como a socióloga argentina Elizabeth Jelin nos explica:
A memória tem então um papel altamente significativo, como mecanismo cultural para fortalecer o sentimento de pertencimento a grupos ou comunidades. Muitas vezes, principalmente no caso de grupos oprimidos, silenciados e discriminados, a referência a um passado comum permite a construção de sentimentos de valorização e maior confiança em si e no grupo. (JELIN, 2002 p.9 e 10, tradução nossa)
Nossos povos têm conseguido, com muita resistência e inteligência, manter nossa história e cultura viva. Seja através dos contos, cantos, das religiosidades, fábulas, corporeidades, do gingado, não interessa, nossas memórias podem não estar escritas em papéis oficiais, mas elas estão escritas, e muitas vezes escancaradas na nossa frente.
No filme Orí (1989), dirigido por Raquel Gerber, Beatriz Nascimento (1989), que roteirizou e protagonizou em tela, alerta que “é preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade” e completa que “a memória são os conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento”.
Para pensar nas memórias negras, o/a cineasta precisa entender pelas cosmopercepções afrocentradas, pois, como afirma Beatriz Nascimento (2018 p.210) “a busca das origens provoca sentimentos contraditórios: o de voltar para trás, que se traduz na melancolia do ‘banzo’, mas também o de conservar e reconstruir no presente, traduzido no espírito do quilombo”. Então acessar essas memórias negras não estará necessariamente no dito, mas também no que não é dito, na expressão corporal, na escolha de planos e de luz, no corpo como um todo.
E é aí que entra nossa criatividade artística. Não me refiro nem a técnicas específicas, mas a essa criatividade ensinada por nossos ancestrais que utilizaram disso e das suas ferramentas para sobreviver em tantos momentos diferentes. Cada época vem com suas tecnologias, seus modos de vida, seus próprios problemas e nossas criatividades sempre existiram para contrapor a realidade. Hoje, apesar de vivermos numa era onde a informação é excessiva, constante, rápida e cotidiana, nós estamos em um momento de tentar reconstruir o mundo. Estamos vivenciando uma desestruturação do mundo que é irreversível. Seja o planeta quanto nossa forma de viver a vida. Acredito que isso tem feito muitos de nós, pisar no chão e olhar para o passado.
E a pandemia do COVID-19 nos fez parar e pensar muito sobre quem somos, de onde viemos, para onde vamos. O medo do futuro, o medo da morte, o medo de não valorizar o hoje, o agora, quem está conosco. O medo de não poder mais ter a presença física de quem amamos. O medo de perder todos os valores passados por nossos mais velhos. O medo de não estar mais aqui no mundo físico, nos fez repensar muito o propósito da (nossa) vida. E não foram poucos filmes pandêmicos que falaram sobre esses sentimentos e tentaram registrar a vida enquanto ela estava aqui. Durante esses anos (2020-2022), foram muitas obras produzidas que falaram de memória, de passado, de temporalidades, de circularidades, de registros familiares e de comunidades. A gente percebeu que a nossa matéria física tem fim e nos desesperamos.
Quando eu falo do passado da minha família, eu não falo sobre mim, falo sobre diversas outras famílias que tiveram experiências semelhantes, assim como falo da minha comunidade, de povos que viveram na minha região, da história da colonialidade em meu território. Falo sobre mim, mas falo sobre nós. Então quando o/a cineasta negro/a/e decide recuperar as memórias da sua vida, ele/ela/elu está tentando recuperar tudo aquilo que a colonialidade destruiu e dizimou. Mesmo com todo massacre, os colonizadores não foram capazes de apagar do corpo/corpus africano e de origem africana a “complexidade de sua textualidade oral e a oralitura da memória” (MARTINS, 2021 p.31).
Em Abril de 2023 tive a oportunidade de assistir dois documentários que me tocaram profundamente que perpassa essa temática. Um foi da antropóloga e artista sergipana Yérsia Assis, “De tudo um pouco sabia costurar” (2022, 24min) que protagoniza as memórias de Dona Carmem, como explica a sinopse:
Sob a ótica e narrativa de Dona Carmem, uma costureira negra que através de sua arte apresenta recortes de histórias que se entrelaçam, abrindo outras camadas sociais, culturais, raciais e de gênero trazidas entre o alinhavar da agulha e o tecer das palavras contadas. O filme constrói uma relação entre costura e memória, onde a câmera como dispositivo de contar histórias apresenta diferentes possibilidades temporais e dimensionais.
Capa do filme “De tudo um pouco sabia costurar” dos diretores Yérsia Assis e Felipe Moraes.
O outro foi “Filha Natural” (2019, 15min52s) da artista visual carioca, Aline Motta. Sua sinopse explica:
A partir de uma análise inédita de iconografia histórica e relatos orais de sua própria família, a artista visual Aline Motta traz à tona hipóteses possíveis sobre as origens de sua tataravó. Há indícios de que ela tenha nascido por volta de 1855 em uma fazenda de café em Vassouras, zona rural do Rio de Janeiro, considerado o epicentro do escravismo brasileiro no século XIX.
Frame do filme “Filha Natural” da diretora Aline Motta
As artistas fizeram um encontro minucioso entre passado e presente, fugiram do hoje e atravessaram o tempo. Aline Motta brinca com as imagens como se fosse uma dança ou um sonho, ali eu percebo o que Tiganá Santana nos explica em sua tese:
Na contracapa do seu livro, Fu-Kiau (2001a) enuncia a seguinte sentença: “Eis o que a Cosmologia Kôngo me ensinou: Eu estou indo-e-voltando-sendo em torno do centro das forças vitais. Eu sou porque fui e re-fui antes, de tal modo que eu serei e re-serei novamente” . O dingo-dingo absorve todos os acontecimentos; o que é, na verdade, está (não no sentido do que se encontra estável, mas o seu revés), segundo princípios kongo. Dingo-dingo diz dingo duas vezes, sugerindo que os processos repetem-se, não findam, circundam. (SANTOS, 2019 p.131)
O pensador congolês Fu-Kiau, assim como o artista e pensador baiano Tiganá Santana nos traduz, e a pensadora mineira Leda Maria Martins nos explica que estamos aqui num tempo espiralado:
O tempo espiralar resulta de múltiplas imbricações: a de um movimento cósmico, simultaneamente retrospectivo e prospectivo, no qual se incluem todos os seres e todas as coisas, ou seja, tudo o que existe em suas várias formas e âmbitos de existir e de ser, todos os fenômenos naturais e transcendentais, desde as relações familiares mais íntimas às práticas e expressões sociais e comunais mais amplas e mais diversificadas; as materialidades do agora, assim como as epifanias do porvir; e ainda a emanação e ressonância das forças e energias vitais que pulsam no movimento e asseguram a sobrevivência de todos os seres e do cosmos, em sua integralidade e totalidade. (MARTINS, 2021 p.207)
Quando Aline mostra a foto de sua bisavó e compara com o rosto de Claudia Mamede, uma líder comunitária de Vassouras, ela percebe ali traços muito semelhantes. Elas não se conheciam, passaram a se conhecer por causa da pesquisa de Aline para saber se a Francisca que encontrou em documentos do século 19, é sua tataravó. Nisso percebemos o tempo espiralar de Fu-Kiau e de Martins. Não é sobre parentesco. É sobre o ir e voltar do tempo que vivemos aqui no mundo físico.
Quando Yérsia e Felipe trazem as lembranças de Dona Carmem, eles trazem também as nossas mais velhas. Existe uma empatia que sentimos ao assistir os relatos dela que perpassa em qualquer espectador. Mas nosso corpo, nosso orí sente e se emociona de maneira diferente. Não falo da emoção de um relato que gera o sentimento físico do orgulho, da dó ou empatia, mas de um sentimento de experiência desse corpo e orí.
Nas duas obras eu me encontrei. Nas duas obras eu encontrei arte e pesquisa muito bem costuradas e articuladas sob uma cosmopercepção que comporta as experiências e vivências daquelas que vieram antes de nós e fizeram questão de passar uma herança que nenhum dinheiro compra: a memória viva, latente, pulsante e presente em nossos corpos. A memória é muito do que temos para prosseguir com esperança e o cinema tem um papel imprescindível nessa trajetória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2002.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte [MG]: Mazza Edições, 2021.
________, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobodó, 2021.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: Possibilidades nos dias de destruição. Diáspora africana: Editora Filhos da África, 2018.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. 2021. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. 1. ed – Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2021. 324 p.
SANTANA, Tiganá. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2019.
________, Tiganá. Tradução, interações e cosmologias africanas. In: Cadernos de Tradução. Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019.