Adriano Del Duca
“eu queria trazer até os senhores, uma família de classe média do terceiro mundo, flagrada em seu estado puro, sem qualquer vínculo aparente com nada a não ser com sua própria imagem primitiva” (Walter Lima Jr. em trecho de Brasil Ano 2000)
No filme, o ano é 2000, e uma família na beira da estrada onde está enterrado o pai, parte para o Norte, carregando apenas uma cristaleira. Após a grande guerra nuclear de 1989, o Brasil aproveitou a oportunidade para, diante da destruição dos países “desenvolvidos”, passar a ocupar um lugar de destaque entre as nações. Ainda que sob as ruínas da civilização, o Brasil estaria cumprindo sua missão de “país do futuro”.
Migrando de carona em um caminhão, chegam a cidade de Me Esqueci, antiquada província colonial onde os militares organizam o lançamento do primeiro foguete interplanetário brasileiro. Envolvidos com o chefe do Serviço de Educação do Índio (SEI), que não atende nenhum indígena já que foram exterminados, recebem a proposta de abrigo em troca de fingirem ser de indígenas, e salvar assim a existência da inútil repartição. Desalojados e famintos, a família aceita a farsa e transformam-se em caricatas figuras brancas tingidas de natividade, travestidas ridiculamente para enganar aos poderosos de Me Esqueci.
Esses personagens migrantes, que chegam a uma cidade e encontram uma oportunidade duvidosa, ridicularizando os poderosos com sua ingenuidade, gerando disputas, conflitos e mudanças, poderia compor o argumento de alguma chanchada dos anos 1950. Mas na narrativa de Brasil ano 2000, a abordagem satírica às representações dos “poderes da colonialidade” será o suporte para o efeito de humor, em que o “esquecimento” funciona como sequela da cultura nacional, e dá o tom de absurdo que compõe a comédia futurista.
Nos bastidores do filme, o ano era 1968, vivia-se o Brasil super-real. Em meio ao reboliço político-cultural entre as diversas formas de rebeldia e autoritarismo que impactaram a sociedade mundialmente no biênio 67/68, Walter Lima e uma série de artistas ligados ao cinema novo e à tropicália, realizam Brasil ano 2000 (Walter Lima Júnior, 1969) uma paródia que mistura comédia musical e ficção científica, em franco diálogo com as inspirações tropicalistas. Escrito e produzido justamente entre os anos de 1967 e 1968, o segundo longa-metragem do diretor cinemanovista, tem como premissa a alegoria futurista de um Brasil do século XXI, onde todo o atraso e colonialidade se manifestam, soando como ironia ao movimento modernizador levado a cabo pelos militares naqueles anos.
A engenhosidade do argumento de Walter Lima se expressa na estrutura do filme. Transitando entre o surrealismo e a chanchada, a narrativa conduz, através de uma família de migrantes, toda uma alegoria das estruturas sociais brasileiras: a Igreja, a imprensa, o Estado, os nativos, os militares, os intelectuais, são caricaturizados em personagens que montam essa ópera bufa sobre poder e colonialismo.
O cenário e os figurinos dessa comédia futurista, estampam a imagem do passado, de toda a arquitetura colonial – dos casarios aos modos de viver – tudo respira o passado da colônia. Os personagens representam instituições e grupos sociais que compõem esse “país do futuro”, ressignificado justamente pela falta de memória. No ambiente diegético impregnado pelo atraso colonial a história gira em torno da preparação do lançamento de um foguete espacial, que insere definitivamente o país no futuro ultramoderno da corrida espacial.
Toda a narrativa é atravessada pela figura de um repórter motoqueiro, talvez a principal referência de um espaço urbano industrial, trajado de jeans e ostentando um veículo automotor. Esse personagem contribui para vincular a alegoria a um tempo histórico contemporâneo ao mesmo tempo em que, como um coringa, provoca a mudança nos personagens, fazendo avançar a narrativa.
O antropólogo do SEI, vestido jocosamente como um caçador de savanas, remetendo em tudo a um elemento estrangeiro, corporifica a relação entre o estado brasileiro, a burguesia nacional e o capital internacional. Burocrata inútil, o sujeito alicia uma família de classe média decadente para que ela simule uma falsa identidade nacional que permita sustentar seu cargo vacilante.
Enquanto o repórter ameaça denunciar a farsa, infiltrando-se entre os poderosos e seduzindo a família, os militares, clero e sociedade local, aceitam a farsa com uma fé insuspeitável de que se cumpre a missão nacional de preservação dos povos nativos. A ingenuidade programada desses personagens ressoa junto a estrutura da alegoria que justifica a convivência harmônica entre a violência colonial e modernidade interplanetária.
Apesar do conflito construir-se a partir do drama doméstico da família que está se dissolvendo, evidenciado no desejo de partir dos jovens Fernando e Ana, a situação ridícula de fingirem ser indígenas insere os protagonistas no contexto de relações que sustentam a alegoria – Me Esqueci, o antropólogo, os militares, o padre, o repórter, o arquivista – e suspendem a realidade para fazer funcionar a paródia ao gênero de ficção científica: a farsa de que são indígenas, a ingênua validação da comunidade, o plano militar de lançamento de foguetes de segunda mão, e o fracasso do plano espacial, tudo é insólito. Essa inconsistência gera o sentido crítico da paródia – a graça está no absurdo dessa projeção de futuro para o Brasil: ruínas, farsa e fracasso.
Nessa paródia se evidenciam uma dupla constatação da precariedade nacional. Por um lado, um país que só atinge o desenvolvimento a partir da destruição dos países desenvolvidos, e que mesmo assim, segue incompleto, incapaz de realizar o feito tecnológico. Por outro lado, vemos um cinema que se assume precário e incompleto tecnologicamente, e utiliza-se do manejo da linguagem e da própria precariedade, do pastiche de referências e citações, da paródia ao musical e a ficção, para pintar uma comédia que soe moderna como entretenimento e crítica como filme político.
As comédias musicais cariocas são referências vagas no filme de Walter Lima, mas não é difícil notar alguns aspectos de chanchadas na estrutura do filme. A descontinuidade da narrativa gerada pela inserção de números musicais, a organização espacial frontalizada dos atores e as soluções narrativas em planos sintéticos, os diálogos claramente marcados denunciando a encenação e a cenografia, o estilo paródico com que se aproxima do gênero de ficção científica, e uma construção estética que busca o humor através dos personagens, em figurinos e cenografias toscos, caricaturas típicas de um cinema estrangeiro, mas deglutidos e ressignificados no caldeirão tropicalista.
Algo de cru ou excessivamente marcado na interpretação dos atores, as coreografias de luta, e a evidencia da dublagem, principalmente nos números musicais, estampam, talvez de forma indireta, uma referência no estilo “primitivo” de filmar das comédias musicais, repletas de “defeitos” que são incorporados de algum modo em sua precariedade, estabelecendo um cinema que busca maior comunicabilidade através da referência aos gêneros populares, mas refletindo suas próprias características precárias, reflexividade que dá a esta paródia um tom alinhado às elaborações vanguardistas que se expressaram no cinema novo e na tropicália.
O projeto de musical que estrutura o filme Brasil ano 2000, é ousado em seu empreendimento, articulando artistas que estavam em destaque no mercado cultural brasileiro. O filme, crítico ao estado de coisas vivido no Brasil naquele momento, parece ter a intenção de atingir um grande público através da trilha sonora de Gilberto Gil, da voz de Gal Costa, da canção de Caetano Veloso e do apelo futurístico de um Brasil do século XXI. Ainda que o recurso cômico seja frágil, já que o tom satírico sustenta uma crítica a um ambiente político repressivo, impedindo que a piada gere efetivamente o riso, a estrutura absurda que a narrativa vai desenrolando, a incongruência entre os objetivos interplanetários e a arquitetura e estrutura social coloniais, fornecem elementos para que as autoridades e estruturas de poder sejam questionadas, o absurdo da paródia é tão grande que “rimos pra não chorar”.
É impossível deixar de notar a absoluta atualidade do filme em pleno ano de 2022. Os personagens militares vaidosos e néscios, os burocratas que apoiam na farsa a continuidade de seus serviços e poderes, as autoridades religiosas como clientes subservientes do poder autoritário, a imprensa oportunista e sedutora, parecem sair do filme diretamente para a realidade política brasileira. Quase como uma predição, a conjunção absurda de fatos surreais que constroem Me Esqueci, parece ganhar viço diante da conjuntura nacional nesse momento do século vinte e um, atualizando e universalizando a crítica que Walter Lima constrói em sua comédia sem graça.
Apesar de todo o absurdo que o filme encena, é difícil rir ou alegrar-se com a comédia. Há um tom lacônico na crítica que o filme ensaia que atravanca o efeito cômico, gerando um estranhamento entre a tentativa da comicidade e efetividade da crítica satírica. As músicas, apesar de utilizarem recursos da música popular, não alcançam o efeito festivo da canção, soam tristes, saudosistas, trágicas.
Nesse sentido há um mecanismo muito interessante de apropriar-se da estrutura da comédia musical e da ficção científica para expor uma análise política que alcance o público de seu tempo, e que funcione como forma crítica, na medida em que frustra as expectativas do público com o compromisso de fazer rir, apresentando uma sátira aos tempos atuais. Se como ficção científica e musical, Brasil ano 2000, parece consciente de sua escassez em atingir os efeitos típicos desses gêneros, em relação a comicidade, a escassez do humor é consequência da realidade projetada, que apesar de absurda, não produz um efeito hilariante senão uma consciência trágica: o Brasil é o país do atraso.