Lucas Reis
O filme de Walter Rogério, Beijo 2348/72, lançado em 1994 faz parte de um corpus de obras um tanto esquecidas no cinema brasileiro. Trabalhos que se posicionam entre o fechamento da Embrafilme e a reconhecida “retomada” do cinema nacional, que teria acontecido após o lançamento de Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil (Carla Camurati), lançado em 1995. Embora seja verdade que a produção brasileira tenha diminuído drasticamente no início da década de 1990, não é correto afirmar que o cinema brasileiro estancou. Mesmo os longas-metragens de ficção se mantiveram – a duras penas – em produção. De qualquer forma, na historiografia clássica do cinema brasileiro, a “retomada” seria um ponto chave em que a produção cinematográfica nacional reacendeu a chama e os filmes retornaram às salas de cinema.
Vale destacar que o termo “retomada”, utilizado para classificar a produção cinematográfica brasileira a partir de meados da década de 1990, demonstra-se curioso, pois salienta um passado do cinema no Brasil. Ao contrário de termos como “Ciclos Regionais” ou “Cinema Novo”, que indicam algo que veio do zero e tem um fim em si mesmo. Por outro lado, a ideia de “retomada” prevê algo que veio antes e retoma-se de alguma maneira, isto é, há um resgate específico de certas características prévias.
No entanto, é necessário afirmar duas questões que consideramos importantes: primeiro, no início da década de 1990, havia uma produção corrente de filmes no país; segundo, que desde o início da década, os longas-metragens de ficção propuseram um olhar para o passado do cinema brasileiro. No primeiro caso, por exemplo, a produção pornográfica se manteve aquecida, houve uma ascensão da produção universitária – especialmente da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) – que deu origem ao Festival Brasileiro de Cinema Universitário (FBCU) -, a produção de animações também se manteve e os curtas-metragens, de maneira geral, continuaram a ser realizados.
Já o segundo caso, que nos interessa mais para o presente texto, fica evidente em algumas obras. Por exemplo, o belo Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, que pode ser entendido como uma despedida da mítica Boca do Lixo, em que diversos filmes foram produzidos entre as décadas de 1960 a 1980, embora algumas obras tenham sido realizadas até o início da década de 1990. Da mesma forma, Perfume de Gardênia (1992), de Guilherme de Almeida Prado fazia referência a um cinema brasileiro de gênero, muito interessado na produção policial, embora dentro de uma roupagem melodramática. Aqui, encontramos dois exemplos de filmes da década de 1990 – anteriores ao que se entende como “retomada” – que lidam com um passado do cinema brasileiro. Provavelmente, por serem trabalhos de diretores reconhecidos e que viveram a fase mítica da Boca do Lixo, ainda são obras comentadas, destacadas de alguma maneira por pesquisadores e críticos.
Outro exemplo é Beijo 2348/72, mas no caso deste, lidava com o humor. Talvez, por conta da comédia ser, de maneira geral, um gênero narrativo tão vilipendiado, o trabalho de Walter Rogério não tenha tanta atenção, e não costume constar nas obras panorâmicas sobre cinema no Brasil, tampouco em trabalhos relacionados ao cinema brasileiro da década de 1990.
No Brasil mais ainda, já que os típicos filmes carnavalescos das décadas de 1930 a 1950 – que passaram a ser conhecidos como chanchadas – foram celebrados por quem defendia um mercado cinematográfico saudável para os filmes brasileiros, mas foram defenestrados por grande parcela dos críticos, que não encontravam neles qualquer valor.
Uma das mais tradicionais características da chanchada eram os cômicos. Atores e atrizes dedicados ao riso do espectador e, que para tanto, não se continham nas mais absurdas estripulias. Não por acaso, o circo foi um espaço de formação para vários dos comediantes que partiram para o cinema. Pode-se dizer que uma característica comum das chanchadas são os tais cômicos, do qual Oscarito e Grande Otelo foram a maior dupla. De forma geral, eram figuras paralelas ao mocinho e mocinha dos filmes, os protagonistas das histórias. Entretanto, quando as chanchadas vão amadurecendo, os cômicos passam a ter o protagonismo dos filmes e relacionamentos amorosos, embora não seja correto pensá-los como galãs.
O filme O Cupim (1960), de Carlos Manga é um bom exemplo em que o cômico ganha o protagonismo e mantém um relacionamento. Oscarito, inclusive, é um popular consultor sentimental em um programa de televisão que se torna alvo de interesse das mulheres. Contudo, não tem o mesmo senso moral de galãs típicos das chanchadas protagonizados por Anselmo Duarte ou Cyll Farney, por exemplo. Além disso, é a mesma persona atrapalhada e cheia de caras e bocas que o próprio Oscarito consagrou durante os anos que atuou nesses filmes.
Em Beijo 2348/72, Norival, vivido por Chiquinho Brandão, carrega consigo uma essência de Oscarito em seus trejeitos. E assim como Oscarito, em seus últimos filmes, assume o protagonismo. O sujeito está desempregado mas, ao conhecer uma moça, essa avisa que há uma vaga de empresa na fábrica em que ela atua. Assim, ele consegue se empregar e, mesmo cometendo algumas trapalhadas, mantém-se no trabalho. O grande problema para Norival é em uma de suas pausas. O rapaz beija Catarina, uma colega de trabalho, e coloca sua vida de cabeça para baixo.
Os movimentos corporais de Chiquinho Brandão lembram muito as estripulias de Oscarito como comentado acima. Contudo, Norival lembra outra persona constante das chanchadas: Zé Trindade. Aquele sujeito que está sempre ligado em pequenas trapaças e mesmo não sendo bonito, entende-se como um conquistador. Basta lembrar de duas frases paradigmáticas de Zé Trindade em O Camelô da Rua Larga (1957), de Eurídes Ramos. Primeiro, ao se ver em uma confusão que envolve muito dinheiro afirma: “Sou vigarista, mas sou honesto” e, posteriormente, quando toda a questão do montante já se resolveu, ele diz: “é difícil ser gostoso”.
Norival é um misto das personas desses dois comediantes que foram fundamentais para as chanchadas. Como é o personagem que conduz o filme, fica evidente a ligação entre o trabalho de Walter Rogério com o cinema de humor brasileiro de meados do século XX. Porém, para não deixar dúvidas, Ankito – outro cômico fundamental do período – faz uma participação especial no filme. De fato, é uma participação curta, mas na qual o ator deixava claro que ainda mantinha a veia cômica viva.
Beijo 2348/72, por outro lado, se afasta das temáticas chanchadescas mais comuns para se aprofundar na burocracia do país. Então saem as trocas de identidades, os vilões estereotipados e a folia carnavalesca, por exemplo, para dar lugar a assembléias, salas de advogados e o Tribunal Superior do Trabalho. O mais curioso é que, de maneira geral, Norival não aparece nesses ambientes. Foi ele quem deu o beijo na funcionária da fábrica que causou o processo, porém, a partir daí, cada vez mais, se torna uma questão entre o sindicato e o advogado da empresa. Dessa maneira, o uso da montagem paralela é bastante inteligente ao contrapor o cotidiano de Norival com o caso que corre com o seu nome, mesmo que ele não tenha muita noção do que acontece. Inclusive, o próprio comenta pouco sobre o tema, como se não fizesse parte de seu universo.
O infinito julgamento por conta de um beijo também expõe um moralismo tacanho da sociedade que se personifica no advogado da fábrica (Antônio Fagundes). Mesmo que ele importune sexualmente a secretária em seu escritório, durante os julgamentos vomita diatribes conservadoras que não condizem com a forma como age. Porém, por fazer parte de uma classe social diferente de Norival, é difícil imaginar que ele sentasse no banco dos réus por algo parecido.
Toda a burocracia que envolve o caso funciona como uma metáfora do cinema brasileiro na década de 1990. Afinal, basicamente toda a produção de longas-metragens no país passou a ser financiada, quase inteiramente, por verba pública em editais culturais. Assim, o filme brasileiro passou a ser mais burocratizado e burocrático. Inclusive, essa se tornaria a reclamação de diversos cineastas que, para terem a possibilidade de realizar os seus projetos deveriam se sentar em mesas de escritório para preencher a papelada necessária e, então, quem sabe, conseguir passar para a realização.
O processo arquivado se torna apenas mais um nas gigantescas estantes cheias de caixas com pastas de tantos processos. Quem toma conta de todo esse arquivo morto é um Joel Barcellos cadavérico. O importante ator, que passou por diversas fases do cinema brasileiro, parece fazer parte daquele ambiente sem vida. Uma metáfora de onde o cinema chegaria com o fim abrupto da Embrafilme. Por sorte, Walter Rogério sabe rir da situação e faz piada com isso. Desde o subtítulo de duplo sentido: “Uma comédia burocrática”, Beijo 2348/72 se mostra capaz de debochar de tudo, até de si mesmo – como faziam as chanchadas.
Em um momento duro do cinema brasileiro – em que era dito que a morte do mesmo era questão de tempo -, Beijo 2348/72 se mostrou capaz de rir da própria desgraça. Assim como fizeram outros filmes da mesma época, como O Corpo, Vai Trabalhar, Vagabundo II ou Não Quero Falar Sobre Isso Agora, pois sempre há formas de zombar de si e do seu entorno. Entretanto, é interessante pensar que o cinema de humor sempre se manteve constante e, talvez, seja necessário pensá-lo de forma perene na nossa cinematografia e não em ciclos, como acontece muitas vezes.