Bruno Ribeiro
Esbarrei pela primeira vez no filme Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez, ao pesquisar sobre os primeiros filmes realizados por pessoas negras no Brasil. Além de dirigir, Odilon assina o roteiro (com diálogos escritos por Luiz Fernando Veríssimo), produção e atua como protagonista. Pelo que consta nos registros, Odilon foi o terceiro realizador negro no Brasil a dirigir um longa-metragem. Antes dele, apenas Cajado Filho e Haroldo Costa haviam dirigido longas, sendo Cajado o primeiro com seu longa de estreia Estou Aí (1949). Aliás, um dado interessante sobre Cajado é que ele já havia escrito e dirigido a cenografia de inúmeros filmes para outros diretores, tendo inclusive sido mencionado por Carlos Manga como o inventor da chanchada.
Um é Pouco, Dois é Bom é constituído de dois episódios com narrativas independentes: Com um Pouquinho de Sorte e Vida Nova… Por Acaso. Apenas o segundo foi digitalizado, sendo lançado para o público em 2006 no DVD Obras raras: O cinema negro da década de 70. A digitalização e lançamento em DVD junto a outros filmes de cineastas negros (com exceção de Compasso de Espera (1973), que foi dirigido por Antunes Filho, mas protagonizado por Zózimo Bulbul) na coleção teve patrocínio da Fundação Cultural Palmares e foi coordenado pelo Centro Afro Carioca de Cinema, fundado por Zózimo, que é também um reconhecido expoente do que se convencionou como cinema negro brasileiro.
O filme de Odilon possui apenas uma cópia em película, armazenada na Cinemateca do Capitólio no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. É também em Porto Alegre que o filme foi rodado e lançado em 1970 e onde Odilon, apesar de ser mineiro de nascença, viveu a maior parte da sua vida. Como assisti apenas à cópia digitalizada do segundo episódio, irei me ater a ele neste texto.
Vida Nova… Por Acaso segue dois personagens: Crioulo, interpretado pelo Odilon, e Magrão, interpretado por Francisco Silva. Recém saídos da prisão e sem um tostão no bolso, eles se veem compelidos a voltar a roubar carteiras nas ruas do centro da cidade. Logo eles constatam o inconveniente de que suas vítimas parecem estar tão quebradas quanto eles. Durante um dos furtos da dupla, e de forma inesperada, o filme se contorce com a chegada em um carro de uma terceira personagem: uma mulher branca, loira e rica, interpretada por Angela Grosser.
Em entrevista a Giba Assis Brasil na série Persona Grata em outubro de 1995, Odilon comenta sobre a gênese de seu interesse em fazer filmes. Ele conta que aos 7 anos de idade, uma professora, Dona Iraci, o levou a uma sessão no cinema Bagdá de Belo Horizonte para assistir a Luzes da Cidade (1931) de Charles Chaplin. Essa sessão foi tão marcante para Odilon que ao término dela ele teria dito: “Dona Iraci, vou lhe prometer uma coisa. Quando eu crescer, eu vou ser igual a esse homem. Eu vou fazer cinema.” É curioso que, assim como Chaplin, Odilon viria a assumir cargos decisivos atrás e à frente da câmera em seu filme, detendo um alto controle criativo da obra.
Na primeira cena de Luzes da Cidade, um monumento está para ser inaugurado. Ele está coberto por um véu. Um político discursa para uma multidão, em êxtase. Em um plano geral, o véu é retirado, revelando Carlitos, personagem interpretado por Chaplin, dormindo sobre o monumento. Na primeira cena de Vida Nova… Por Acaso, vemos em um plano geral o monumento no centro da Praça da Matriz em Porto Alegre. Surge “magicamente” Crioulo, personagem interpretado por Odilon, em um efeito de trucagem estilo Georges Méliès, acompanhado de uma música que irá se repetir ao longo das cenas com a dupla Crioulo e Magrão batendo carteiras nas ruas. É durante esses momentos de furto que Odilon aproveita para decupar o centro de Porto Alegre, em planos gerais amplos e variados.
A cena após os créditos de abertura do filme de Odilon também revela semelhanças de tonalidade humorística com o filme de humor mudo de Chaplin. Ao realizar o processo de saída da prisão, o guarda pede para que Odilon e Magrão assinem um documento. Odilon desenvolve um breve esquete de humor sem se utilizar de palavras, ao riscar seu dedão com a caneta que seria destinada a assinar o papel e marcar sua impressão digital no documento, revelando dessa forma o provável analfabetismo do personagem (Magrão, em contrapartida, assina seu nome no documento). Esse recurso de humor silencioso será utilizado em outros momentos do filme pelo personagem de Odilon, enquanto caberá a Magrão as grandes pérolas de diálogos do filme, como na cena em que a dupla rouba comida em uma loja de carnes e frios. Enquanto Crioulo observa de perto as linguiças expostas nas estantes, novamente em silêncio, Magrão chama o gerente em um canto e solta: “Meu chapa, disfarça e fique de olho naquele ali. O marrom. Eu tô reconhecendo o modelo. É um ladrão fichado. É o ratinho, o terror dos mercados. É especialista em frios e enlatados”. Alertado, o gerente vai até Crioulo. Aproveitando a distração do homem, Magrão pega várias linguiças e corre. Crioulo, em mais uma performance cômica e silenciosa, sorri cinicamente para o gerente, pega um ovo e quebra na cabeça dele, fugindo em seguida. Essa dinâmica de diálogos espertos por parte de Magrão e de ações cômicas por parte de Crioulo irá permanecer ao longo do filme.
Antes mesmo do lançamento de Um é Pouco, Dois é Bom, ele já era citado em jornais locais como o primeiro filme urbano do Rio Grande do Sul, muitos o celebrando como um passo rumo à modernidade do cinema gaúcho, que até então tinha grande parte de sua produção focada em temática rural. Em determinado momento do filme, em um movimento de pan a partir de um ponto alto da cidade, a câmera percorre os prédios, praças e ruas por onde a dupla irá realizar seus furtos, dessa vez acompanhada de uma música de western americano. A dimensão do filme enquanto um espetáculo permeia toda a sua extensão, desde sua introdução ao segundo episódio com o uso de uma trucagem e apresentação do próprio Odilon falando diretamente para a plateia, passando pela música “furtada” de alguma trilha musical composta por Ennio Morricone enquanto a dupla foge após afanar uma carteira, até ao que parece ser uma figura circense condutora nas cenas finais.
Apesar de se afirmar enquanto um filme urbano, a obra de Odilon não parece interessada em fazer qualquer elogio a uma pretensa modernidade, optando em vez disso a expor os problemas da urbanidade gaúcha, que não consegue disfarçar os evidentes problemas sociais e econômicos gritantes de sua população mais pobre.
Ainda pensando sobre a chave do humor do filme, um fato que se destaca na trajetória de Odilon é sua relação com a produção da Atlântida Cinematográfica, no Rio de Janeiro. Odilon foi para o Rio muito novo e aos 17 anos começou a trabalhar como assistente de câmera e cinegrafista em diversas produções do estúdio, como Aguenta o Rojão (1958), de Watson Macedo e O Batedor de Carteiras (1958), de Aloísio T. de Carvalho, tendo também feito uma ponta como ator em No Mundo da Lua (1958), de Roberto Farias. A Atlântida é lembrada principalmente por seus filmes de chanchada, que é amplamente reconhecida por pesquisadores e teóricos como um gênero cinematográfico de humor brasileiro. O cinema de humor parece constitutivo não só do desejo inicial de Odilon por fazer cinema, mas também de sua formação profissional. O garoto que se encantou na infância pelo cinema através de um filme do Chaplin se viu anos mais tarde um jovem adulto trabalhando ao lado de atores cômicos como Grande Otelo e Oscarito em uma fábrica de filmes de humor e de grande alcance de público. O que chama mais atenção no filme do Odilon, entretanto, é o que o distingue dos filmes de humor que o precederam. Voltemos ao momento anterior à chegada da loira.
Crioulo e Magrão estão em sua ronda habitual atrás de carteiras. A música tema dos furtos, suave e de melodia agradável, acompanha a cena. Dois policiais surgem e a música se altera rapidamente, assumindo tons graves, que logo se dissipam quando a dupla se esquiva dos policiais. A tensão proveniente do risco de serem pegos é marcada no jogo de roubos. É a primeira pista do que virá. Magrão assume a posição de vigia enquanto Crioulo, que parece mais habilidoso na arte de pegar as carteiras sem ser notado, se prepara para dar o bote na bolsa de uma transeunte. Quando sua mão alcança o interior da bolsa, a trilha musical suave é interrompida bruscamente pelo som alto e agudo de um carro freando fora de quadro. Crioulo se assusta. Corte para um plano detalhe da roda do carro freando ruidosamente. Corte para um plano frontal e próximo do rosto de uma mulher loira, que olha em direção à câmera e convida: “Vem cá!”.
O filme, que até então parecia “apenas” uma comédia urbana, se revira e se torna algo novo, estranho, assustador e fascinante. Essa é a primeira ruptura radical do filme, que transita da comédia para um breve e intenso instante de terror. Crioulo entra no carro e a mulher revela suas intenções. “Você parece aquele artista de cinema, o Jim Brown”. É feita uma inserção rápida de uma imagem de divulgação do faroeste 100 Rifles (1969, de Tom Gries, que se destacou por ser um dos primeiros filmes de faroeste americano a apresentar um casal inter-racial como protagonista) com Jim Brown sendo abraçado por trás por Raquel Welch (o filme de Odilon fará uso de inserções como essa em outros momentos, com destaque para a inserção que mostra Crioulo descendo ovacionado a arquibancada de um estádio em um delírio de ascensão). Em conversa na fogueira, Magrão alerta: “Burguês dando sopa só pode ser vigarice”. Crioulo, porém, segue apostando no que acredita ser sua fada boa.
A transição para um registro de terror é acentuada com a cena em que os personagens de Odilon e Angela andam de pedalinho em um lago, com uma trilha que lembra aquelas caixinhas de música com uma bailarina girando. O aparente clima de romance e ternura acentua o terror daquele encontro e a expectativa por um desenlace desastroso para o homem negro. Vemos Crioulo cada vez mais alienado da realidade ao se ver mimado com roupas e promessas de conforto e ascensão social. A mulher convida Crioulo para a acompanhar a uma ida à praia naquele final de semana. Alguns amigos dela também irão. Crioulo fica reticente por não ter roupas novas. Isso rende outra cena de aflição, em que a mulher leva o personagem de Odilon para comprar roupas. Nesse momento o filme ainda parece se dividir entre a comédia e o clima de tensão, com transições bruscas de humor na trilha musical. Magrão, que é branco e pobre, tenta alertar o amigo novamente em uma das cenas mais bonitas em termos de composição visual do filme, na orla do Guaíba, e em mais um fantástico diálogo, mas Crioulo segue obstinado e na defensiva.
O segundo grande momento de ruptura de tom vem na ida à praia. Carros avançam pela areia. Um deles capota e de dentro sai um jovem branco, sendo logo rodeado por vários outros jovens brancos bem vestidos, sugerindo que o grupo é de uma classe social mais privilegiada. Eles brincam na água do mar e Crioulo se junta à brincadeira. A cena assume um tom surrealista, que será acentuado por um psicodelismo crescente a partir da introdução de uma mulher fantasiada e maquiada que parece vir de algum imaginário circense europeu. O psicodelismo atinge seu ápice na sequência dos jovens no quintal de uma casa de praia. Uma câmera na mão passeia entre eles, que já não mais se encontram em um registro naturalista de encenação, enquanto Crioulo anda de um lado para o outro com os olhos vendados. A figura circense observa a cena do telhado da casa, se divertindo. A trilha sonora é de sons metálicos e de uma percussão e piano angustiados. A composição geral da cena é artificial e surrealista. Os jovens grafitam um muro com símbolos e frases que remetem a pautas de uma esquerda intelecutal e progressista mesclados a outros de aparente aleatoriedade, como uma suástica nazista e a constatação de que cigarro dá câncer. O que não parece aleatória é a escolha da música I Put a Spell on You, de Nina Simone, na cena anterior, durante uma festa em um casarão onde a mulher loira dança com Crioulo.
A sequência se conclui com a chegada da tia da loira rica, que interrompe o momento em que Crioulo é despido pela personagem de Angela na frente de todo mundo na praia. A princípio Crioulo imagina estar a salvo da bizarra situação, mas a senhora o acusa de ladrão e o bando de jovens brancos se volta contra o personagem de Odilon. Magrão tenta ajudar e acaba sendo perseguido também. A dupla volta à prisão e nesse momento o filme sugere um ciclo inescapável: da mesma forma que na primeira cena, ao saírem da prisão, eles viram uma dupla igual a eles (encenadas pelos mesmos atores) chegando na penitenciária, agora eles são testemunhados por uma dupla igual a eles que está saindo da prisão.
Algo que me parece interessante na forma como o filme faz essas transições de gênero e tom é que ele nunca abandona a base da comédia que o lança. Mais do que apenas um trânsito entre gêneros, o filme cria uma espécie de híbrido tonal entre a comédia, o terror e o surrealismo, se tornando um filme de difícil apreensão se levarmos em conta essas categorias de forma isolada. É também um filme que não esconde seu desejo de comunicação com um público amplo, mas que não obteve o devido reconhecimento e distribuição, inclusive por parte dos movimentos negros, como aponta Odilon em entrevista para a Revista Filme Cultura nº40, em que comenta que apenas Zózimo o reconheceu em sua época. Impossível também não deduzir o impacto na recepção ao filme que o desprezo generalizado por filmes de humor e de apelo popular (como as chanchadas) costumam enfrentar em círculos de cinema intelectualizado e academicista. Talvez com a redescoberta do filme por parte de uma nova geração de cinéfilos e cineastas, o filme possa voltar a circular e a ser discutido como um marco importante para além da constatação de ser um dos primeiros filmes dirigidos por uma pessoa negra brasileira.
Um dia esbarrei no filme de Odilon. Cheguei a ele devido a uma escassez histórica de produções dirigidas por cineastas negros que o alavancou ao panteão do pioneirismo. Permaneço nele por algo mais estimulante: ser um filme inventivo, estranho e divertido de assistir – e que como todos os filmes que tendem a ser atemporais, sempre reserva algum frescor e novidade para futuras revisões.