Lucas Reis
* Publicado originalmente no site Cineplayers
Em 1992, Guilherme de Almeida Prado se preparava para lançar seu quarto longa-metragem, Perfume de Gardênia. Trabalho posterior a A dama do cine shanghai (1987), vencedor do festival de Gramado. Baseando-se no filme anterior do realizador, era possível ter uma ideia do que viria: um trama policial explosiva, que exalava tensão sexual em cada fotograma. Mesmo nos créditos iniciais, essa ideia se amplifica quando o título do filme em cores brancas sobre o fundo negro ganha um vermelho carregado na palavra gardênia. A cor rubra está associada à paixão, ao desejo e ao tesão, estando também associada à morte, ao sangue e à brutalidade. Em última instância, a cor está relacionada à intensidade. Esse é o núcleo duro do cinema de Guilherme de Almeida Prado, que filma transbordando energia e vigorosidade.
No entanto, em A dama do cine shanghai o mistério está presente desde o início, acentuando os fortes contornos do cinema neo-noir – comuns à década de 1980 no cinema norte-americano. Basta lembrar de Corpos ardentes (Body Heat, 1981), O ano do dragão (Year of the dragon, 1985) e Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) como destaques do resgate do gênero, comum da década de 1940. Além do neo-noir, Perfume de Gardênia se encharca de atributos do melodrama, o gênero cinematográfico do excesso por excelência. Isso ocorre por conta de Gisa (Christiane Torloni) que passa por uma mudança ao longo da narrativa. Enquanto em A dama do cine shanghai Suzana (Maitê Proença) inicia como uma mulher sensual e misteriosa, Gisa começa como uma dona de casa, ingênua até certo ponto. Bem, é verdade que logo no começo ela seduz o marido Daniel (José Mayer), porém é o esposo com que já tem o filho Joaquim (Marcelo Ribeiro). Ela ainda não é a mulher fatal em que se transforma ao longo do filme.
Em se tratando de femme fatale, Torloni e Proença não devem nada para as musas da Hollywood das décadas de 1980 e 1990, que se consgraram em tramas de alta voltagem sexual: Diane Lane (O selvagem da motocicleta), Kim Basinger (Nove semanas e meia de amor), Melanie Griffith (Fogueira das vaidades), Michelle Pfeiffer (Ligações Perigosas), Sharon Stone (Instinto selvagem), Demi Moore (Proposta indecente). As duas constroem personagens aptas a moverem o mundo, caso se sintam desafiadas. A Gisa de Christiane Torloni é exatamente fruto de um desafio. Casada com um sujeito machista e estúpido que acha que a tem como propriedade. Daniel não quer que ela participe de um filme após ser convidada pelo diretor, então, após ser agredida, ela aponta uma arma para ele no hall de um cinema. Ali, ela indica que irá tomar as próprias decisões. O filme é hábil em revelar essa separação, que começa com as projeções de Gisa no espelho e se acentua durante a sequência que ela assiste com Daniel o filme em que ele queria proibi-la de atuar. Os dois estão em poltronas coladas, porém com os corpos os mais distanciados possíveis.
Anos depois, Daniel é engolido pelo grande cartaz de Vampira do sexo – que Gisa protagoniza – enquanto empurra o seu velho táxi. Aliás, Daniel assiste este filme no cinema e começa a ter alucinações com a imagem da ex-esposa. A mulher que existia para ele carnalmente, mas que ele costumava ver em projeções (os espelhos), torna-se, de fato, fruto de uma ilusão, seja maquínica – o projetor do cinema – seja inconsciente – a imagem da personagem da ex-esposa que começa a perseguí-lo.
Gisa, contudo, não é só a femme fatale que desperta desejos sexuais, porém também é uma mãe dedicada. Aqui, as doses de melodrama se acentuam. Ela que abraça Joaquim quando o menino está dormindo; ela que esconde de Daniel que o garoto foi na casa de um amigo brincar; e é ela que pretende dar uma televisão à cores para a criança, que Daniel nega por não gostar do barulho do aparelho e alega que quer paz quando chega em casa. A condição de mãe devota, porém, pausa quando ela tem de sair da casa de Daniel e é o pai que se encarrega do filho durante a adolescência, contando-lhe que a mãe viajou depois de dar um tiro nele – a arma foi apontada, mas não disparou.
Daniel obviamente se ressente de ter sido abandonado pela mãe, mas mantém o desejo secreto de reencontrá-la. Não é por acaso que a primeira vez que ele a vê depois de crescido é na televisão, objeto de desejo na infância. De novo, a imagem de Gisa é uma projeção, mas aqui, não representa dor ou insanidade, porém, a vontade de um reencontro físico que acontece, quase que por acaso, quando Daniel vê uma passageira que necessita de um táxi e percebe que é a própria mãe. Eles vão ao bar do qual Gisa é sócia, um lugar taciturno composto por escuras luzes vermelhas quase que na totalidade. Ali, Daniel revive a história da mãe desaparecida e percebe que foi o pai que lhe tirou a possibilidade de conviver com a progenitora.
É verdade que Daniel consegue resgatar a mãe em sua vida, mas a própria Gisa se recoloca no mundo de outra forma. Em uma conversa dos dois à beira da piscina, ela afirma que o melhor dia de sua vida foi o nascimento de Daniel. Depois, o enrola em uma toalha e embala o filho adulto como se esta fosse a mesma criança da qual foi forçada a se separar. Gisa é uma personagem altamente complexa, que Christiane Torloni compõe com muita distinção. Desde seu olhar, terno como de uma pietá, até os seus cabelos presos e domados, que contrastam com seus longos e selvagens cabelos esvoaçantes quando soltos, Gisa se remodela em diversos momentos, mas é sempre a mesma.
O diretor também é importante para a composição de uma personagem complexa. Dono de uma rara habilidade em construir personagens – Guilherme de Almeida Prado além de realizador era um roteirista de mão cheia – faz de sua protagonista uma musa incomum e altamente singular. Inclusive, os momentos de maior sensualidade da personagem se dão, justamente, nas cenas em que ela está atuando, como se Prado destacasse que a femme fatale fosse, exclusivamente, uma composição ficcional. Cabe destacar que se Christiane Torloni e Maitê Proença podem ser comparadas com as atrizes de maior destaque de Hollywood na época, Guilherme de Almeida Prado também se compara a Brian de Palma, Francis Ford Coppolla, Adrian Lyne e Paul Verhoeven, diretores que se dedicaram a filmes com altas doses de sensualidade.
Prado se deixou influenciar pelo cinema maneirista como esses diretores. No entanto, tinha uma visão muito própria dos filmes – o vermelho citado aqui não é parte fundamental de A dama do cine shanghai ou A hora mágica? Sua câmera costumeiramente móvel, mas nunca frenética passeia pelos mais diversos espaços – bares, casas, cadeias, sets de filmagem -, sempre com a mesma elegância, mas que ganha tons de maior intensidade em momentos dramáticos específicos: como o feixe de luz nos olhos de Daniel quando ele confronta Gisa e diz que ela não levará o seu filho. A tensão também é habilmente orquestrada na trilha sonora. Por exemplo, no momento em que mantém a mesma música, em duas sequências diferentes, unindo e amplificando a aflição da chegada da polícia na casa de Daniel após o próprio se passar por policial.
No entanto, qual seria a diferença entre Prado e os cineastas de sua época citados acima? Uma distinção, com certeza, é o discrepante contexto de produção. Hollywood se tornou um dos grandes pólos de realização cinematográfica do mundo. Além de ser uma convergência de talentos – Paul Verhoeven era holandês e Adrian Lyne era inglês, por exemplo. Sendo assim, Guilherme de Almeida Prado estava em um ambiente de visibilidade muito menor. Mais ainda, o realizador esteve ativo profissionalmente em um momento econômico muito complicado do Brasil e, consequentemente, do cinema brasileiro.
Perfume de Gardênia foi lançado em 1992, quando Fernando Collor era o presidente do país e havia encerrado a Embrafilme, fazendo da produção cinematográfica brasileira – especialmente de longas-metragens de ficção – uma raridade. O filme, contudo, enfrenta esse momento e expõe as condições de produção. Essa exposição dos dilemas econômicos não está na forma propriamente, como ocorria nas chanchadas em que os filmes eram considerados mal feitos ou no Cinema Novo em que uma estética da miserabilidade se torna ponta de lança de um projeto que intencionava destacar as desigualdades sociais do Brasil.
No entanto, Ody (José Lewgoy), o diretor que descobre Gisa, é uma figura que carrega consigo as dificuldades de se fazer cinema no Brasil. O personagem é uma criação que mescla diferentes vertentes do passado do cinema brasileio. A começar pelo nome, o mesmo de Ody Fraga, importante profissional da Boca do Lixo, que dirigiu mais de vinte filmes entre as décadas de 1970 a 1980, como Reformatório das depravadas (1976), E agora José? – Tortura do sexo (1979) e Palácio de Vênus (1980). Guilherme de Almeida Prado foi assistente de direção em filmes de Ody Fraga como no belo A fêmea do mar (1981). Prado, então, homenageia o seu mestre e valoriza a Boca do Lixo paulistana como um todo ao batizar seu personagem de Ody.
A escolha do ator também é importante para valorizar Ody como uma persona do cinema brasileiro. Afinal, José Lewgoy ficou marcado com um dos grandes vilões das chanchadas das décadas de 1940 e 1950. Uma época na qual os filmes eram questionados pela crítica cinematográfica, porém o público lotava as salas para assistir as estripulias das obras marcadas por um tom cômico. Ao mesmo tempo, na década de 1960, Lewgoy faz em Terra em Transe (1967) um líder populista – como Glauber Rocha acusava as chanchadas de serem. Assim, o ator fez parte de duas fases distintas e até antagônicas do cinema brasileiro.
Embora, em 1992, já não houvesse muito espaço para esses conflitos. A produção era minguada e, só o fato de existirem filmes brasileiros era uma vitória. Então, assim como Verhoeven, Coppola, De Palma se associam, em alguma medida, a uma estética maneirista – pós cinema clássico e cinema moderno -, Prado também faz parte de uma época em que a ruptura do Cinema Novo diante das chanchadas de décadas anteriores já foi absorvida no cinema brasileiro que passa por outros conflitos. Naquela fase, não tanto de ordem interna, mas de ordem externa.
Em Perfume de Gardênia, Ody resolve convidar a estrela que descobriu, Gisa, para fazer uma peça porque estava com dificuldades financeiras a ponto de passar fome, como a atriz faz questão de ressaltar em uma briga com o diretor. Dessa forma, apenas o ato de dirigir, de escrever ou até mesmo se manter ativo na produção artística se torna uma luta e um mérito. Não por acaso, nos créditos finais de Perfume de Gardênia se destaca: um filme brasileiro de Guilherme de Almeida Prado. O longa-metragem posterior de Prado, A hora mágica (1998) só viria a ser lançado seis anos depois, sinal da contínua dificuldade de produção. Dessa forma, o realizador não tinha a mesma opção de seus pares estrangeiros para lançar um filme a cada dois anos, em média.
Ao mesmo tempo, Perfume de gardênia não se furta em destacar que uma parcela da sociedade tinha uma relação muito distanciada com o cinema brasileiro. Especialmente Daniel, que enxerga com maus-olhos a possibilidade de Gisa se inserir no meio cinematográfico. Ele comenta com a então esposa como “aquela gente é perigosa” mesmo sem dar mais detalhes e quando Gisa recebe seu primeiro cachê, ele pergunta: “Essa gente ganha tanto assim para aparecer?”. A carreira de Gisa no cinema não poderia trazer nada de positivo para uma esposa e mãe, na visão do taxista.
A estreia do primeiro filme de Gisa, inclusive, é o que desencadeia sua separação de Daniel. Ele sai revoltado com o fato de ver sua esposa simulando sequências eróticas no cinema. Daniel se parece com o personagem do filme de Gisa que fica a destilar diabrites conservadoras acerca de uma suposta moral e bons costumes. Nesse sentido, se parece muito com os personagens de Costinha (Comendador Emanoel) em O Libertino (1973) ou de Rogério Fróes (Augusto) em Amada Amante (1978), que costumam destacar como são homens de moral, embora, na realidade, sejam bem diferente do que afirmam.
Aliás, o cinema brasileiro do passado vai brotando em Perfume de Gardênia aos poucos como o estrangulador de loiras que faz referência ao Memórias de um estrangulador de loiras (1971) ou os radialistas que informam as notícias mais escabrosas que Daniel costuma ouvir no táxi, fazem referência ao Bandido da luz vermelha (1968). A personagem de Betty Faria, Odette Vargas é uma clara referência a Odete Lara, importante atriz do cinema brasileiro.
Para além do nome que remete a uma atriz que participou de chanchadas como Absolutamente Certo (1957) ou obras ligadas ao Cinema Novo como O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), a personagem que Betty Faria faz no filme de Ody é uma empregada que lembra bastante a personagem da mesma atriz em Romance de empregada (Bruno Barreto, 1987). Odette Vargas também é um tipo meio ridículo de estrela em decadência que faz de tudo para chamar a atenção, vide o seu cachorro que combina com o vestido que a mesma usa na abertura do filme que protagoniza no Cine Brasil – mesmo cinema de A dama do cine shanghai. Prado também se permite a autorreferência.
Fazer cinema, ao menos no Brasil, está ligado à paixão, um desejo intenso pela possibilidade de fazer filmes, mesmo com tantas dificuldades que estão postas pelo caminho. Dessa maneira, a escolha de Guilherme de Almeida Prado em Perfume de Gardênia é a de fazer um filme sobre o cinema e não exatamente um filme dentro um filme. Não há aqui, uma narrativa em mise-en-abysme em que uma narrativa deglute a outra e embaça para o espectador o que seria o filme e o que seria o filme dentro do filme. É uma obra sobre cinema, pois é uma atividade artística que exige uma intensidade gigante, seja de paixão (Gisa), seja de alucinação (Daniel).
O final de um filme tão brasileiro naquele período não poderia ser ser um happy end. Entretanto, é um final em aberto, em que ainda há um futuro para aquela história. De certa forma, após 1992 o cinema brasieiro teve melhores fases apesar de que, atualmente, voltamos a nos aproximar de um período histórico semelhante ao do fechamento da Embrafilme. Cabe apegar-se em Guilherme de Almeida Prado e valorizar seu cinema com toda a paixão que ele induz e acreditar que melhores dias virão.