Um Craque Assalariado

Lucas Reis

Há dois mitos de esferas completamente diferentes sobre a história do Brasil que se desmontam, de alguma maneira, no filme Garrincha, A Alegria do Povo. O primeiro envolve de uma questão cinematográfica: a distinção total entre o cinema brasileiro popular e o movimento conhecido como Cinema Novo. A segunda é um caso futebolístico: Garrincha foi uma unanimidade popular antes, durante e depois da Copa do Mundo de 1962 em que o Brasil se sagra campeão e ele foi considerado o melhor jogador do campeonato. 

As duas ideias acima fazem parte de uma construção de cânones a respeito da história do Brasil. A primeira sobre o Cinema Novo como um movimento único no país que rejeitou o cinema nacional anterior e consolidou uma base para a produção cinematográfica brasileira. Nesse sentido, o ano de 1962 seria essencial para o Cinema Novo por conta do lançamento de 5x Favela (Cacá Diegues, Miguel Borges, Marcos Farias, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman), além de Barravento (Glauber Rocha), na Bahia. Seria uma espécie de ano zero para o movimento. Já a segunda ideia sustenta que Garrincha, um gênio com a bola nos pés, não sofria críticas duras como jogador e foi uma unanimidade ao chegar na copa do mundo de 1962.

Pensar cânones é muito relevante para uma leitura sobre a história do Brasil e, no caso da Revista Aurora especificamente, sobre a história do cinema brasileiro. É fácil partir de Garrincha, A Alegria do Povo como uma obra tipicamente cinemanovista e elaborar uma leitura fílmica a partir deste ponto. Contudo, ela faz parte de um período intenso da cinematografia nacional que inclui o Cinema Novo. Entretanto, há outros agentes no universo cinematográfico daquele período que fazem parte da história e são relevantes para a obra.

Sobre os dois mitos mencionados, começaremos pelo cinematográfico. O diretor de Garrincha, A Alegria do Povo, é Joaquim Pedro de Andrade, um dos cinemanovistas mais celebrados que sempre esteve presente no movimento. Por outro lado, é uma produção da Herbert Richers, empresa que se caracterizou pelas chanchadas. No livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha afirma que a intenção do Cinema Novo era negar as chanchadas. A afirmação de Rocha tem um contorno muito forte nos textos históricos do cinema brasileiro. De alguma maneira, as descrições parecem indicar que não haviam pontos de contato entre o Cinema Novo e as chanchadas. No entanto, não é verdadeiro afirmar que o movimento cinemanovista não se relacionou com o universo chanchadesco.

Profissionais da área, temáticas das obras e posição no mercado cinematográfico são alguns exemplos dos pontos de ligação entre o Cinema Novo e as chanchadas. Dessa maneira, é pobre, no mínimo, entender Garrincha, A Alegria do Povo apenas como um precursor ou um dos filmes-base dos cinemanovistas. Se é verdade que é possível pensar a obra dessa maneira, também é real destacar que a produção era uma forma da Herbert Richers se aproximar de temáticas mais politizadas, que ascenderam no início da década de 1960. Inclusive, é comum encontrar destaques sobre um rejuvenescimento do cinema brasileiro, especialmente ao ressaltar a juventude dos realizadores, contudo, mesmo que jovens diretores estivessem surgindo como era o próprio Joaquim Pedro de Andrade, havia espaço para outros mais experientes como Anselmo Duarte e Roberto Farias, que são formados na tradição dos estúdios cinematográficos brasileiros.

Assim, a forma mais vantajosa de se compreender Garrincha, A Alegria do Povo é pensar no cinema brasileiro do início da década de 1960 que sofria uma transformação intensa a partir de seus filmes. Não como um momento anterior ao que se tornaria o Cinema Novo. A Herbert Richers continuou a existir como produtora de filmes e, posteriormente, tornou-se uma das maiores empresas de dublagem do país. Além disso, alugou por anos seus estúdios para a Rede Globo de Televisão, antes da construção dos estúdios Globo, anteriormente conhecido como Projac. E, mesmo que a Herbert Richers seja mais lembrada pelas chanchadas, é preciso destacar que esteve, por exemplo, na produção de Vidas Secas e Fome de Amor – dois filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos. O primeiro ficou marcado na história do cinema brasileiro como uma obra de grande importância no Cinema Novo.

Garrincha, A Alegria do Povo era um filme muito interessante para a Herbert Richers investir. Tinha um chamariz para o público ao colocar um dos grandes fenômenos futebolísticos do ano de 1962 e, ao mesmo tempo, se comprometia com uma leitura política acerca do Brasil da época. No filme, o jogador de futebol não é pensado como uma estrela sem obstáculos na carreira. Em um primeiro momento, até existem as sequências do jogador no Maracanã ou mesmo andando pelas ruas e sendo abordado pelos fãs. 

No entanto, o filme se estabelece, de fato, quando se volta para o biografado antes de fazer sucesso no time do Botafogo. Na cidade de Pau Grande/RJ, onde nasceu, Garrincha atuou no time da fábrica, onde seus amigos de vida ainda jogavam. Lá fica evidente que o salário de um jogador de futebol está longe de ser algo nababesco. E que Garrincha é uma exceção, a regra dos jogadores de futebol é o trabalho fabril e um pequeno salário para atuar pelo time da fábrica – ou o futebol de várzea. O Maracanã lotado não faz parte da vivência de grande fatia dos jogadores de futebol.

Mesmo para um craque, a vida como atleta não é fácil. As fortes dores no joelho estão no filme e um médico é convidado para comentar sobre o físico do jogador. É necessário conviver com as dores, com as infiltrações para se manter em pé e continuar em campo.

É possível dizer que Garrincha, A Alegria do Povo se divide em duas partes. Se a primeira faz um panorama sobre o atleta, como debatido acima, a segunda foca na Copa do Mundo de 1962. Daí, o filme faz questão de destacar como Garrincha era considerado gordo antes do mundial e não era uma unanimidade. Foi, inclusive, questionado por não se alimentar corretamente. Então, se após o resultado final, é comumente destacado como Garrincha foi celebrado, a obra é importante para demonstrar que a exaltação é posterior, mas só faz sentido se não houver uma leitura mais atenta daquele momento.

Garrincha, ao longo da competição, vai se tornando, cada vez mais, o principal jogador do Brasil, especialmente após a contusão de Pelé no segundo jogo. A possibilidade de vitória do Brasil passa pelas “pernas tortas” do craque. Inclusive, a sua expulsão na semifinal cria um problema diplomático e o Brasil faz um pedido oficial para que Garrincha não seja suspenso e possa atuar na partida final.

A comemoração pela vitória na Copa do Mundo mexeria com o Brasil. Joaquim Pedro de Andrade, consciente da questão, contrapõe imagens da vitória em 1962 com o choro dos brasileiros com a derrota na final em 1950. Esse é um dos momentos mais inteligentes do filme. Não há o uso de narração em voz over, comum nos documentários daquele momento. Mesmo Garrincha, a Alegria do Povo é construído a partir de tal recurso. Entretanto, no momento citado, Joaquim Pedro opta apenas por inserir as imagens sem qualquer descrição.

No entanto, fica evidente que as derrotas se cravam na memória social e a tristeza parece ser muito mais comum do que as felicidades, que parecem efêmeras. Neste momento, o filme assume uma esfera de maior escopo e passa a destacar mais o futebol como interesse popular. Claro que a própria escolha pela figura de Garrincha já faz parte da intenção de se inserir em um contexto de paixão do povo. Contudo, ao se dedicar às comemorações, o jogador sai de cena por um momento e os torcedores como imagens do povo tomam o protagonismo da obra.

A visão de Joaquim Pedro de Andrade não é exatamente positiva sobre o jogo, mas não deixa de valorizar o futebol como fenômeno popular. Há um interesse genuíno em mergulhar no esporte mais popular do país por meio de uma estrela de impacto. Contudo, sem qualquer caráter celebratório.

Rever Garrincha, A Alegria do Povo é uma ótima oportunidade de entender o cinema brasileiro do início da década de 1960, momento especialmente movimentado da produção nacional. Contudo, também é importante não ficar em lugares-comuns como simplesmente pensar o ano de 1962 pela ótica do Cinema Novo. Assim como não é interessante fazer uma análise celebratória de um jogador como Garrincha, como alguém que fosse blindado de críticas. O melhor é promover um olhar com profundidade, assim como fez Joaquim Pedro de Andrade.