Rodrigo Bouillet
Se estiver certo, apenas oito filmes nacionais circunscritos ao âmbito do futebol estrearam em salas de cinema nos dez primeiros anos da dita retomada.
Todos os Corações do Mundo, de Murilo Salles, 1996
Boleiros, Era uma Vez o Futebol, de Ugo Giorgetti, 1998
Histórias do Flamengo, de Alexandre Niemyer, 1999
Uma Aventura do Zico, de Antonio Carlos da Fontoura, 1999
Zico, o Filme, de Elizeu Ewald, 2003
Pelé Eterno, de Anibal Massaini Neto, 2004
Garrincha, Estrela Solitária, de Milton Alencar Jr, 2005
O Casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto, 2005
Nesse período, o longa-metragem brasileiro comercial de ficção compareceu com quatro títulos, sendo Uma Aventura do Zico e Garrincha, Estrela Solitária centrados em ídolos deste esporte que é tema da atual edição da Revista Aurora. É sobre o primeiro que gostaria de comentar, acerca de como ideologias que servem à reprodução do capitalismo (neoliberalismo, democracia burguesa e multiculturalismo) entram em campo.
Uma Aventura do Zico tem como ponto de partida um concurso promovido por uma emissora de TV aberta. Em um típico programa de auditório, Cesar Filho – indefectível apresentador da época ladeado por bailarinas de palco em coreografias questionáveis – anuncia o resultado de “Aprenda Futebol com Zico”, com a presença do jogador. A partir de cartas recebidas, 22 garotos são escolhidos para passar um mês na escolinha de futebol do eterno craque rubro-negro.
São selecionadas crianças de Manaus, Cataguases, Uberaba, João Pessoa, Belém, Barbacena, Goiânia, Ponta Grossa, Maceió, Ribeirão Preto, Brasília, Salvador, Vitória, Porto Alegre, além daquelas que o filme efetivamente acompanha. Assim, o filme nos apresenta: Artur Sampaio (Felipe Barreto Adão), o Tuca, menino negro peladeiro morador do Morro Dona Marta, na cidade do Rio de Janeiro; Dida (Dado Oliveira), garoto negro do Crato, no Ceará; Kazuo Fukamati (Rodolpho Fukamati), descendente de japoneses classe-média que vive no bairro da Liberdade, no município de São Paulo; e Lula Carneiro D’Assunção (Carla Gomes), menina branca de família do agronegócio de Alegrete, no Rio Grande do Sul.
As origens e condições de cada um não são detalhadas. Do pouco que é informado, Tuco vive em uma casa simples, enquanto assiste o programa de TV na sala sua mãe passa roupa; Dida precisa ir até um mercadinho para ver o resultado; Kazuo tem uma televisão em seu quarto, que é repleto de itens orientais e de esportes como futebol e basquete, e vive com sua mãe; Lula, órfã criada pelo avô, interrompe sua cavalgada pela fazenda para conferir os selecionados.
Por outro lado, extrapola-se na representação estereotipada. Se Tuca, com camiseta, bermuda e gorro do Flamengo, e Dida, com chapéu e/ou bolsa de couro, ainda soam verossímeis, Kazuo e Lula estão absolutamente caricatos em suas vestes “típicas” japonesas e gaúchas, respectivamente. Todos se valem de sotaques excessiva e canhestramente carregados assim como de palavras e expressões regionais utilizadas de forma abusiva, tendo como efeito frases artificiais.
Outros momentos do filme reforçam diferenças: no anúncio dos selecionados, Zico se refere a Kazuo falando “olha o japinha aí, gente!”; quando as quatro crianças entram no quarto de hotel onde ficam hospedadas, Dida escolhe a cama mais próxima da janela, com vista para o mar. Na piscina do hotel surge a faísca de um diálogo mais interessante no qual Kazuo diz que nada em um clube, Dida conta que onde mora nem chove, Tuca fala que no alto da favela ele só pega água de latão na bica e Lula comenta que tem cinco lagoas nas terras de sua fazenda. A conversa, porém, para por aí, logo mudando de rumo.
O concurso era apenas para meninos. Para se juntar aos demais selecionados, Lula é obrigada a se travestir. Corta o cabelo e passa a usar macacão e boné.
Fred Mondo (Gabriel Gabriel), filho “mauricinho” de um milionário que mora no bairro carioca do Jardim Botânico é, segundo suas irmãs, “gordo e ruim de bola”. Acrescentamos mimado e mal-educado à descrição. Ele também participa do concurso, mas não é selecionado. Inconformado com o resultado, pede a seu pai (Jonas Bloch) que utilize das experiências da Divisão de Pesquisas Avançadas de sua empresa de tecnologia para clonar Zico. A cientista Judith Bernstein (Betty Erthal) se oferece para ajudar o rapaz fazendo uma duplicata do jogador.
No primeiro terço do filme, Zico pouco aparece. Ele é sempre apresentado de forma mediatizada (através de imagens de TV) ou como celebridade (com um séquito de repórteres em seu encalço). Ainda que retratado de forma humana e generosa, sempre está instruindo jogadas, reforçando o aspecto do profissionalismo, jamais estreitando laços pessoais. Não por acaso, nunca está exclusivamente com as crianças. Mesmo que esteja no mesmo ambiente que elas, Zico tem seu tempo disputado, sendo solicitado para entrevistas, assim como é afastado fisicamente delas, impossibilitado de maior aproximação pois cercado de jornalistas. Quando está próximo, sempre focado em aspectos do jogo, o contato com os alunos é, de certa forma, sonegado ao espectador, pois o filme o faz através de reportagens ou da tela de análise de dados de Judith, que filma Zico o tempo todo.
Após duplicado, no segundo terço, o Zico original se torna uma pessoa mal-humorada, zangada. Já ZiCópia é extremamente alegre e solícito, poderíamos dizer ingênuo e infantil. Zico (de forma militaresca, como a trilha-sonora sugere) passa a exigir grandes esforços físicos dos alunos, levando-os à exaustão; decepciona-os quando palestra sobre o “fim da história” tanto do futebol-arte quanto da paixão pelo esporte e pelo clube que se joga, enaltecendo o dito futebol moderno, da força física, da disciplina tática e dos contratos multimilionários com times do exterior; se aborrece com a banda de pagode do filho Bruno (difícil não dar razão!), reclama da perda de tempo à atenção a vida familiar (interpretados pelos próprios). ZiCópia foi feito para ser o treinador pessoal de Fred. Ele topa tudo que lhe é oferecido. Numa noite, foge da mansão do menino. Em Quintino, bairro onde nasceu, ao lado de companheiros de infância e juventude, curte intensamente uma roda de pagode na mesa de bar, participa de pelada. Quando retorna, ZiCópia prefere apenas divertir-se com Fred e seus amigos em uma pelada enquanto o garoto deseja aprender futebol em seus aspectos mais técnicos, disciplinares, esquemáticos. O conflito faz com que o pai de Fred ordene Judith a trocar ZiCópia por Zico.
No último terço do filme, feita a substituição, ZiCópia bagunça com os alunos da escolinha no treino, no ônibus, no hotel durante a refeição e no salão de jogos. Com Zico, o tiro sai pela culatra. Nada o convence a conduzir o time de Fred, seu compromisso é com os alunos da escolinha. Fred e o pai bolam um plano: Zico assiste a uma reportagem onde ZiCópia aparece. Enraivecido com quem julga ser um impostor, Zico aceita a proposta de Fred em treinar seu time para mostrar quem é o verdadeiro Zico (e qual tipo de futebol deve prevalecer). Durante a partida, ZiCópia, na beira do campo, pede futebol-arte; Zico, assistindo ao jogo do trailer de Judith, exige marcação com mais pressão. Lula, que desvenda o mistério ao longo do filme, leva ZiCópia para encontrar Zico durante o intervalo. Um aperto de mão entre os dois faz com que Zico “absorva” ZiCópia, voltando a ser como antes. Zico volta a campo para orientar o time dos alunos da escola. A partida está em 1×1. Lula, na reserva, pede para entrar a cinco minutos do final, faz o gol da vitória e revela que é menina.
No fim, pelo amor das crianças ao futebol, Zico convida tanto os alunos da escolinha quanto Fred e seus amigos a treinar em seu centro de futebol. Lula e Tuca ficam juntos.
O filme contou com a experiência de Antonio Carlos da Fontoura na direção, de Lucy e Luiz Carlos Barreto na produção de Cláudio Amaral Peixoto na direção de arte, de Virgínia Flores na montagem, de David Tygel na trilha-sonora. Contou também com canções compostas e/ou interpretadas por Fagner, Skank, Evandro Mesquita e Só no Sapatinho.
Conforme Fontoura, “O Barretão e eu imaginávamos que por conta do Zico e da torcida do Flamengo o filme emplacaria no mínimo um milhão de espectadores. Mas o tiro saiu pela culatra. O Brasil perdeu a Copa de 98, o Romário botou a culpa no Zico, o filme foi lançado em meio a vários blockbusters no fim do ano e o sucesso esperado não se cumpriu.” (1)
O Brasil foi vice-campeão, perdendo para a França, seleção anfitriã, por 3×0, em julho daquele ano. Zico era assistente do técnico Zagalo e levou a (anti-)fama sobre o corte de Romário. Uma Aventura do Zico foi lançado em 15 de janeiro de 1999 com 43 cópias, mesmo dia que Zoando na TV, com 143. Naquele fim de semana, entre 15 e 17 de janeiro, Simão: o Fantasma Trapalhão, em 215 cinemas, fez 124 mil espectadores e Uma Aventura do Zico, apenas 13 mil. Um investimento de R$ 5 milhões que arrecadou um pouco mais de R$ 158 mil. Um retumbante fiasco.
Ainda que a derrota da seleção (que pode ter esfriado os ânimos de pais e filhos), a acusação de Romário (talvez mais atinente aos pais) e a péssima estratégia de lançamento (que colocou em disputa a atenção do público infantil) tenham influenciado o fracasso do filme, a obra tem deméritos próprios.
As interpretações das personagens da gaúcha Lula e do cearense Dida foram extremamente prejudicadas pela exigência caricatural de sotaques e expressões locais. Em Lula isso se fez sentir ainda mais, pois ela é a criança de papel mais destacado, responsável pela maior parte dos diálogos do elenco infantil. Aliás, um dos papeis mais importantes do filme, pois é ela quem desvenda a trama da cópia e ainda é a única personagem com um dilema próprio: fingir-se menino. Porém, nenhuma referência ao machismo e à misoginia na sociedade de classes, ao fato de que mulheres foram proibidas por lei de jogar futebol no Brasil ou aos obstáculos que a FIFA empreendeu para dificultar a prática e a profissionalização do futebol feminino. Nada além do feminismo liberal na forma de “menina também joga bola”.
Outro ponto que comprometeu o filme foi ter ignorado qualquer tratamento à construção da amizade entre as quatro crianças. Subitamente colocadas no mesmo quarto de hotel, nada se extrai desse convívio: quem são, no que acreditam, desejos, angústias, surgimento de afetos e desentendimentos. Nada. Basicamente, tudo se reduz a Tuca e Dida não acreditarem em Lula sobre a cópia de Zico, com Kazuo auxiliando-a em alguns momentos; ou os três meninos caçoarem dela, pois a todo momento se confunde com o gênero das palavras na tentativa de fingir-se menino. Desta forma, espanta o beijo de encerramento entre Lula e Tuca.
Esta cena, recobrando o início do filme, serviria para coroar a grande democracia social, territorial, racial e de gênero brasileira através do futebol. O esporte paixão nacional uniria igualmente a todos os grupos sociais. No filme, afogado nas ilusões do multiculturalismo, as diferenças não fazem diferença pois tudo se trata da relação de cada pessoa com o jogo. Porta-voz do engodo neoliberal proguessista, as diferenças podem ser suplantadas (nos termos deste ensaio: mascaradas) através do sucesso profissional individual – terminando por reafirmá-las como atributos essencialistas, a-históricos, portanto, esvaziadas de conteúdo político.
É a ideologia do self made man que prevalece no campo da igualdade meramente formal. No Centro de Futebol Zico, no primeiro treino, o craque faz um resumo de sua trajetória, de quando chegou no Flamengo aos 13 anos. Apesar de baixo e magro, conseguiu sucesso, pois, segundo ele, acreditava em seu potencial: “A gente tem que ter confiança pra pode ser alguém na vida. Eu venci dessa maneira”. Não há dúvidas sobre a importância deste fator emocional, contudo, nenhuma referência é feita ao intenso tratamento de fortalecimento muscular a que foi submetido às expensas do clube – elemento indissociável do seu sucesso. A materialidade é implacável.
Zico até vai bem no início do filme, pois apenas reencena situações de entrevistas e palestras que de fato fazem parte de seu cotidiano. São “falas de jogador” que tanto nos acostumamos a ver, com afirmações genéricas, evasivas e impessoais. Contudo, quando solicitado a interpretar duas personalidades distintas (a mal-humorada e a divertida) tudo desanda. Talvez por isso o grande espaço cedido ao elenco de apoio adulto, sempre convocado a entrar em cena para alguma ação (muitas vezes sem a presença de Zico) ou comentário (reduzindo o número de falas do jogador) para tocar o filme para frente, impedindo um maior foco do filme sobre o personagem-título e, assim, se valer do culto ao ídolo.
Neste sentido, o maior erro de todos, foi o afastamento de Zico das crianças. No primeiro terço, é o professor-profissional envolto a um enxame de repórteres; no segundo e em boa parte do terceiro, é tanto o mal-humorado avesso à família que só acredita em disciplina, força e negócios para os alunos quanto o fanfarrão namorador, do pagode e das peladas com os amigos de Quintino.
Uma Aventura do Zico não consegue cultivar a figura do ídolo a uma nova geração por apresentá-lo sempre de forma distante tampouco cativa o público infantil a assistir crianças na tela pois não diz quem são nem se aprofunda sobre a relação entre elas muito menos explora o craque em grandes jogadas para o público adulto. O filme não se cumpriu em qualquer aspecto, foi uma aventura que deu zica.
(1) Murat, Rodrigo. Antonio Carlos da Fontoura: espelho da alma. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. 204p. Coleção aplauso. Série Cinema Brasil. Disponível em https://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.813.505/12.0.813.505.pdf