Lucas Reis
Não vamos pagar nada (2020), o novo filme protagonizado por Samantha Schmutz, é uma espécie de oposição ao primeiro filme da atriz como protagonista: Tô Ryca (2016). Neste, a personagem Selminha receberia uma grande fortuna caso participasse de uma jornada de gastos desenfreados em uma espécie de jogo de um milionário excêntrico. Assim, caso conseguisse gastar 30 milhões de reais sem adquirir nenhum patrimônio, receberia 300 milhões de reais. Então, a moradora de uma favela do Rio de Janeiro tinha a possibilidade de ascender na pirâmide social tipicamente carioca – do morro ao asfalto, da zona norte a zona sul -, e frequentar espaços que antes lhe eram negados.
Tô Ryca faz parte de uma geração de filmes populares brasileiros com personagens que ascendem socialmente através de uma fortuna recebida de maneira disparatada, porém oportuna. Até que a sorte nos separe (2012) é um campeão nesse quesito. Por três vezes, Tino (Leandro Hassum) recebeu montantes astronômicos e os perdeu na mesma velocidade que conseguiu adquirir. Outros filmes como De Pernas para o ar (2010) também lidavam com a condição de acúmulo de capital, mas, dessa vez, a partir de um negócio de sucesso em que uma mãe e esposa começou a investir em uma sex-shop.
Tô Ryca, por outro lado, junto de Um suburbano sortudo (2016) e Vai que cola (2015), rumam em uma direção um tanto diferente. Uma condição de classe se torna mais presente. A chique Zona Sul do Rio de Janeiro passa a receber sujeitos que não faziam parte daquele estrato social e, nessa condição, criam-se situações embaraçosas. Não que essa condição seja nova no filme brasileiro, basta lembrar de Rico ri à toa (1957) e da fortuna que o taxista Zé Fubica (Zé Trindade) recebe em condições misteriosas, mas que o faz mudar de vida. Todas essas obras expunham como o Rio de Janeiro é uma cidade dividida e bem menos integradora como fazem parecer materiais publicitários diversos. O “carioca” é uma figura muito mais heterogênea do que pode parecer em um olhar menos atento.
No entanto, essas obras da segunda década do século XXI fazem parte de uma época do Brasil muito próxima e, ao mesmo tempo, muito distante. A ascensão econômica do país foi interrompida e crises sociais que pareciam diminuir se tornaram cada vez mais comuns, infelizmente. É nesse sentido que Não vamos pagar nada se coloca no pólo oposto de Tô Ryca. Pois, não há mais Samantha Schmutz adquirindo roupas caras, frequentando salões finos e entrando em uma boate elitizada para fazer com que todo mundo se virasse ao “passinho”, dança ligada ao subúrbio do Rio de Janeiro. Dessa vez, a atriz interpreta uma dona de casa (Antônia) que não tem dinheiro para fazer as compras do mês no supermercado. A sequência em que ela foge do funcionário do estabelecimento – o cantor Criolo em participação especial -, que está etiquetando produtos com preços mais altos, parece ter saído de um Brasil do final da década de 1980 em que a inflação galopante fazia com que a moeda se desvalorizasse velozmente.
Um acerto do diretor estreante João Fonseca é inserir a ação em um bairro de classe média baixa composto, em sua maioria, por trabalhadores fabris e profissionais informais. Contudo, mesmo essa população tem dificuldades econômicas gritantes. Muitas pessoas estão perdendo o emprego, criando uma situação insustentável. Dessa forma, o saque no supermercado, que dá início a trama, eclode como a gota d’água para um grupo de pessoas que é massacrado continuamente. Quando ouvem que não são trabalhadores da boca do novo dono do estabelecimento, o motim se forma e a expropriação dos produtos do supermercado acontece.
Assim, mesmo que Não vamos pagar nada esteja próximo temporalmente de Tô Ryca, o país retratado parece ser completamente diferente: uma parcela da população que passou a ter acesso aos bens de consumo no início do século XXI volta a estar excluído socialmente. As diferenças, inclusive, parecem estar no valor de produção das duas obras. Enquanto Tô Ryca se desenvolve em diversos cenários, com ambientes onerosos e tem uma vasta gama de personagens, Não vamos pagar nada é, basicamente, o contrário. A narrativa se desenrola em poucos ambientes, seis personagens compõe o núcleo central do longa e, parece não ter sobrado dinheiro para os figurantes nas sequências que necessitam de multidão. É incomparável a quantidade de pessoas no comício político de Selminha em relação aos poucos gato-pingados que ficam em torno da repórter que dá uma notícia bombástica no final de Não vamos pagar nada.
Mesmo os cenários do filme de Fonseca parecem um tanto exagerados, como se fossem criados de última hora na intenção de gerar um tom farsesco. Especialmente o apartamento de Antônia e João (Edmilson Filho), como também o de Margarida (Flávia Reis) e Luis (Leandro Soares), capricham na falta de móveis e improvisação de espaço. A sala, a cozinha e a dispensa de Antônia e João parecem um mesmo cômodo, apesar de relativamente grande. Não por acaso, Antônia esconde os produtos do supermercado no quarto, pois ali ainda é um cômodo diferente da casa.
A obra baseada na peça italiana Non se paga! Non se paga! carrega uma certa tradição do filme popular brasileiro. Por exemplo, Nem Sansão, nem Dalila (1954) joga com a mesma condição de fazer deboche da situação socioeconômica do Brasil. Inclusive, ao fazer piadas com o escândalo do acréscimo de água nas garrafas de leite que acometeu o Rio de Janeiro na década de 1950 ou ironizar a precariedade econômica do país perante as potências financeiras mundiais. A chanchada dirigida por Carlos Manga, parodiava um mito de priscas eras para ridicularizar a situação política do Brasil contemporâneo à obra. Na época do lançamento do filme, Nem Sansão, nem Dalila foi entendido como mais uma comédia brasileira sem valor. Somente vinte anos depois, críticos como Jean-Claude Bernardet e João Luiz Vieira, resgataram o filme como uma das principais obras políticas do país, mas que foi mal recebida no momento em que entrou em cartaz.
Em Não vamos pagar nada, há uma situação parecida com o filme de Manga. Há diversos trechos que indicam um olhar politizado para o Brasil atual. Desde o samba de abertura que versa sobre “a maré que não está moleza não”, até a demissão em massa que acomete todas as pessoas do bairro. Entretanto, o real texto político está na forma e não no conteúdo, propriamente. Após a expropriação no supermercado que tem um caráter de verossimilhança, as situações passam a ser cada vez mais absurdas e sem nexo com a realidade. Para Antônia e Margarida não serem pegas com produtos do supermercado, elas fingem que Margarida está grávida. A partir de então, nada mais faz sentido e as as histórias mais pitorescas são contadas para dar continuidade ao fio narrativo.
Num país em que momentos absurdos fazem parte da rotina dos cidadãos, o filme insere a falta de lógica na vivência dos personagens. Assim, conversas sobre transplante de feto e orações para santas inexistentes se tornam naturais. Contudo, é necessário avaliar que essas situações são tão absurdas quanto a de um trabalhador ter de comer sopa de alpiste ou carne para cães para se alimentar. Cabe ao espectador se perguntar o que é mais chocante.
O único comentário sobre a anormalidade da situação acontece quando João diz ser muito estranho ser bem tratado por um policial. O policial civil (Fernando Caruso) e, especialmente, o policial militar (Flavio Bauraqui) acreditam na profissão, porém fazem certos questionamentos. O PM chega a dizer que se sente trabalhando para os ricos, por exemplo. Essa fala vem enquanto os policiais invadem as casas das pessoas do bairro para procurar as mercadorias. Tais pontuações conseguem trazer o filme para a realidade social do país, enquanto eventos disparatados se desenrolam continuamente.
Uma das grandes vantagens da obra é a qualidade do elenco, que permite um humor tresloucado variando entre o físico e o verbal. Especialmente Samantha Schmutz que compõe uma personagem completamente diferente aqui do que no já citado Tô Ryca se mostra uma comediante talentosa e que consegue transitar em vários terreno do humor. A sequência em que ela afirma que Margarida está próxima de ter o bebê, porém não pode ir ao hospital, dá o tom de uma atuação que varia rapidamente entre momentos mais baixos e de histrionismo. Schmutz também é generosa em cena para dar espaço aos outros atores terem seus momentos de brilho. Assim, a afinação do elenco se traduz em diversas boas piadas que se desenrolam ao longo da obra.
Não vamos pagar nada é um filme de humor de um Brasil de 2020 que não faria sentido cinco anos atrás, mas que traduz de forma cômica e debochada muito do país atualmente. O texto humorístico tem como propriedade colocar o dedo na ferida e expor contradições políticas e sociais, residindo nisto um dos grandes valores da obra. Resta esperar que em um futuro próximo, os filmes cômicos não tenham tanto material como lhes foi oferecido em 2020.