Rodrigo Bouillet
A revista AURORA organiza um cineclube online quinzenal, a partir do tema e dos textos de cada edição. O ensaio que escrevi para a nossa edição anterior, sobre Cinema brasileiro anos 90, não remetia diretamente a qualquer filme. Era um diálogo direto com o texto O Cinema Popular Acabou?, de Hernani Heffner, no qual pretendi debater o conceito de “cinema popular”.
Para a sessão referente ao texto, escolhemos Vai Trabalhar, Vagabundo II – A Volta (1991), de Hugo Carvana (1937-2014). Além da homenagem a Carvana, profissional injustamente pouco celebrado, recobrar sua trajetória como ator e diretor nos permitiria debater os vários conceitos de “cinema popular” descritos por Heffner. No período que vai dos anos de 1950 até a virada do século, independente da função exercida, Carvana participou de quase todos os “tipos” de “cinema popular” elencados pelo autor, nos mais diversos “modos de produção” – que na historiografia clássica traduzem-se por chanchada, cinema novo, cinema marginal, Embrafilme e cinema da retomada (e pós-retomada?).
Com a missão de redigir algumas linhas sobre o cinema brasileiro de humor, tema desta nova edição, não saía de minha mente certa parte do debate da sessão de Vai Trabalhar, Vagabundo II – A Volta. Ao compararmos os percalços e vicissitudes da personagem Dino no primeiro filme (1973) com os de sua sequência, verificamos uma larga diferença. O malandro virador, trambiqueiro e bilontra do original, que aplicava golpes em uma pequena-burguesia vigarista assim como em seus pares de lumpemproletariado, transformou-se em impostor internacional metido em mirabolantes artimanhas multimilionárias em busca de reconciliação com um grande amor do passado. O Rio de Janeiro, as ruas, o sol, as roupas esfarrapadas, a sinuca, o amor livre deram lugar a São Paulo, aos casarões da alta roda, à noite, a trajes bem alinhados, ao pôquer, ao restabelecimento da família tradicional.
O que aconteceu com vagabundos e malandros de rua a partir daí no cinema brasileiro de humor?
NEOLIBERALISMO
Importante notar que, neste ínterim, houve o aprofundamento do projeto neoliberal no país. Dentre tantos fatos internacionais e domésticos que podemos citar (recomendo voltar tanto ao texto de Heffner quanto ao meu), no que concerne estritamente aos negócios do cinema, impossível ignorar a reconfiguração do mercado interno, especificamente de seus pontos de exibição e do perfil de seu público: o encerramento de um amplo circuito de cinemas de rua e o surgimento de multiplexes encapsulados em shoppings em bairros de maior poder aquisitivo.
Aliás, se alguém defende a tese de que o projeto neoliberal no cinema brasileiro cumpre-se com a existência de leis de incentivo e que isto é uma característica definidora da retomada da produção de longas, Vai Trabalhar, Vagabundo II – A Volta já era da retomada antes mesmo desta existir. Afinal, o financiamento ao filme proveio de empresas através da Lei Sarney, antecedente direta da Lei Rouanet.
A ELITE DO CINEMA BRASILEIRO DE HUMOR: GRUPO GLOBO E FRANQUIAS
De acordo com a Listagem dos Filmes Brasileiros Lançados Comercialmente em Salas de Exibição 1995 a 2020, publicado em 28/03/2022, pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA da Agência Nacional do Cinema – ANCINE, um total de 1.966 foram exibidos comercialmente no período. Destes, 1.176 não alcançaram sequer 10 mil espectadores, praticamente 60% das produções. Na outra ponta, apenas 154 filmes fizeram, no mínimo, 500 mil espectadores, ou seja, menos de 8% do que foi exibido.
Considerando-se os 52 filmes de maior público do período, temos um recorte das obras que obtiveram 2 milhões de espectadores ou mais. Neste universo, 29 são comédias (não-infantis). Quem são elas? Abaixo, a posição no ranking de maior público entre 1995 e 2020, o título do filme, o nome da pessoa responsável pela direção e o ano de produção.
04 – Minha Mãe É Uma Peça 3, de Susana Garcia, 2019
05 – Minha Mãe É Uma Peça 2,de César Rodrigues, 2016
07 – Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho, 2009
09 – Minha Vida Em Marte, de Susana Garcia, 2018
10 – De Pernas Pro Ar 2, de Roberto Santucci, 2012
12 – Minha Mãe É Uma Peça, de André Pellenz, 2013
14 – Até Que A Sorte Nos Separe 2, de Roberto Santucci, 2013
15 – Loucas Pra Casar, de Roberto Santucci, 2015
16 – Se Eu Fosse Você, de Daniel Filho, 2006
17 – De Pernas Pro Ar, de Roberto Santucci, 2011
18 – Até Que A Sorte Nos Separe, de Roberto Santucci, 2012
21 – Até Que A Sorte Nos Separe 3, de Marcelo Antunez/Roberto Santucci, 2015
22 – Vai Que Cola, de César Rodrigues, 2015
23 – Lisbela E O Prisioneiro, de Guel Arraes, 2003
24 – Meu Passado Me Condena, de Júlia Rezende, 2013
27 – Os Normais, de José Alvarenga Jr., 2003
28 – Cilada.com, de José Alvarenga Jr., 2011
29 – Fala Sério, Mãe!, de Pedro Vasconcelos, 2017
30 – Vai Que Dá Certo, de Maurício Farias, 2013
32 – Meu Passado Me Condena 2, de Júlia Rezende, 2015
33 – Os Farofeiros, de Roberto Santucci, 2018
34 – E Aí, Comeu?, de Felipe Joffily, 2012
35 – Os Penetras, de Andrucha Waddington, 2012
40 – A Mulher Invisível, de Cláudio Torres, 2009
43 – O Candidato Honesto, de Roberto Santucci, 2014
44 – Sexo, Amor E Traição, de Jorge Fernando, 2004
46 – Os Normais 2, de José Alvarenga Jr., 2009
48 – O Auto Da Compadecida, de Guel Arraes, 2000
52 – A Grande Família, de Maurício Farias, 2007
Dando continuidade ao que foi notado por Heffner quanto ao cinema brasileiro dos anos 1990 [“as respostas comerciais mais significativas do período vieram dos filmes associados ideológica e/ou materialmente às emissoras de televisão”], a Globo Filmes aparece como empresa produtora brasileira majoritária ou minoritária em 19 das 29 produções do período.
Há filmes de 11 diferentes franquias presentes neste grupo de 29 produções. As que contam com participação da Globo Filmes são: Minha Mãe É Uma Peça, Se Eu Fosse Você, De Pernas Pro Ar, Até Que A Sorte Nos Separe, Meu Passado Me Condena, Os Normais, Minha Vida Em Marte, Os Penetras. Ficam de fora O Candidato Honesto, Vai Que Dá Certo e Vai Que Cola.
Dos que não pertencem a franquias, Loucas Pra Casar, Cilada.Com, Fala Sério, Mãe!, A Mulher Invisível, O Auto Da Compadecida e A Grande Família têm a Globo Filmes como empresa produtora. As exceções são Lisbela E O Prisioneiro, Os Farofeiros, E Aí, Comeu?, Sexo, Amor E Traição.
Os filmes que não têm a Globo Filmes como empresa produtora gravitam, de alguma forma, em torno do Grupo Globo: desde Vai Que Cola – franquia derivada de série veiculada no canal de TV por assinatura Multishow, pertencente ao conglomerado – até o vínculo profissional mais cotidiano e/ou a identificação da carreira de artistas e técnicos com os produtos veiculados, sobretudo, na emissora de TV aberta do grupo.
O CINEMA BRASILEIRO DE HUMOR E O IDEAL PEQUENO-BURGUÊS: ESTABILIDADE ECONÔMICA, ALCOVA E ÓDIO AOS POBRES
Nesta atualização de Dino aos tempos e termos de aceleração do neoliberalismo, a produção foi responsável por uma sequência lapidar. Na tentativa de escapar do assalto milionário que aplicou em sua noiva em terras caribenhas, Dino resolve fingir a própria morte. Retorna ao Brasil com identidade falsa e o dinheiro escondido no caixão. Vários amigos comparecem ao sepultamento, curiosamente nenhum deles presentes no filme de 1973. Os personagens de Nelson Xavier e Luthero Luiz são os únicos reconvocados e sabem da encenação. Xavier, antes, era um grande e elegante jogador de sinuca. Porém, havia abandonado o esporte como condição da mulher que amava para com ela viver (o que atinge financeiramente o casal, que mora em uma favela). Agora, passa a ser proprietário de uma fábrica após casar com outra mulher, uma herdeira. Luiz, que era desocupado e alcoólatra, transforma-se em um eficiente ajudante de Xavier. Ambos os amigos, direta ou indiretamente, cobram de Dino o rompimento com seu modo de vida (trapaceiro, mulherengo e boêmio), a partir de pressupostos de meritocracia e retidão moral. Ao que Dino corresponde, procurando reconciliar-se com o grande amor de sua vida, reconhecendo o filho que não sabia existir, aplicando o último grande golpe que garantirá um futuro tranquilo para sua família e com ela fugindo… para fora do Brasil!
O vagabundo, o malandro, simbolicamente morto através de um enterro concreto a seus pares, encerra o filme definitivamente aposentado, navegando para terras distantes. Nesse sentido, Vai Trabalhar, Vagabundo II – A Volta anunciaria a retirada de cena do lumpemproletariado das comédias brasileiras, sobretudo aquelas de maior público, a partir de 1995.
Há vagabundos e malandros de rua como protagonistas desses filmes?
Lisbela E O Prisioneiro e O Auto Da Compadecida devem ser descartados, pois não se passam nos núcleos urbanos que abrigam esses tipos.
Minha Mãe É Uma Peça acompanha as idiossincrasias de uma mulher classe média niteroiense divorciada mãe de três filhos que vira apresentadora de programa televisivo. Se Eu Fosse Você narra a troca de espíritos entre marido e esposa, ele publicitário, ela, professora de música. De Pernas Pro Ar apresenta a derrocada conjugal e profissional de uma alta funcionária workaholic de uma empresa de brinquedos que reconstrói sua vida com sucesso no ramo do sex shop. Em Meu Passado Me Condena um casal (ele, animador de buffet infantil; ela, jornalista econômica) resolve seus imbróglios afetivos em viagens pelo mundo. Os Normais revela as agruras amorosas e sexuais de um casal de noivos, ele trabalhador de departamento de marketing; ela, vendedora de loja de roupas. Os Homens São De Marte… E É Pra Lá Que Eu Vou e Minha Vida Em Marte seguem a vida amorosa e sexual de uma bem-sucedida organizadora de cerimônias de casamento. Cilada.com trata da traição e tentativa de reconciliação de um publicitário com sua namorada. Fala Sério, Mãe!, sobre o crescimento dos filhos de uma família classe média do Grajaú. A mãe, jornalista; o pai, um funcionário bem-sucedido. Os Farofeiros tem como centro quatro colegas de trabalho de uma grande empresa que vão, com suas famílias, para uma mal-sucedida viagem para uma casa de praia. E Aí, Comeu? acompanha as desventuras amorosas e sexuais de três amigos: um arquiteto, um jornalista e um escritor com herança. Sexo, Amor E Traição segue o mesmo fio, só que elencando uma fotógrafa, um escritor, um mochileiro hedonista, um publicitário, uma modelo e uma zoóloga. A Grande Família abarca as questões afetivas de uma família formada por um funcionário de repartição e sua esposa dona de casa, a filha cabeleireira e seu marido taxista, e o filho desocupado que momentaneamente vira mendigo. Loucas Pra Casar apresenta as ansiedades e alucinações de uma quarentona obcecada por organização e que tem como único problema na vida não estar casada, assim, preocupada em satisfazer as vontades, desejos e fetiches do proprietário de uma imobiliária da qual é amante e assistente. Em A Mulher Invisível, um funcionário de controle de tráfego da prefeitura apaixona-se por sua vizinha imaginária após ser abandonado por sua esposa.
Como se pode observar, não há sombra do lumpemproletariado nestes filmes. Também não há burgueses. Todas as personagens fazem parte de uma classe trabalhadora ativa representada por profissionais liberais em carreiras absolutamente estáveis e satisfatórias. Em nenhum momento debate-se sobre incertezas ou ambições em negócios, emprego ou carreira. Uma demissão, como a da protagonista de De Pernas Pro Ar, por exemplo, serve para reorientá-la nos empreendimentos, mas não configura como um problema em si, não toma qualquer espaço na trama. Desta feita, sobra um gigantesco espaço para confusões e reconciliações afetivas, amorosas e sexuais em chave conservadora e moralista – os verdadeiros motes das produções. Ao final dos filmes, abundam abraços fraternos e cenas de casamento. E vida que segue em confortável regozijo. Dentro e fora da tela, no último caso, ao menos como utopia. Assim sendo, o público (a classe média que frequenta shoppings) não procuraria quiprocós de alcova nesses filmes, mas sim uma correspondência aos seus anseios de estabilidade econômica inabalável e a perder de vista, sendo que, a partir dela, é apresentado pelos filmes uma reafirmação dos valores de tradição-família-propriedade sob uma fachada falsamente hedonista (aliás, muito pudica e repleta de culpa cristã, como o tripé citado exige).
Há filmes que não seguem essa linha à risca, mas também não implicam qualquer desvio à norma.
Vai Que Dá Certo foca em quatro amigos de adolescência: um músico de bar dispensado do estabelecimento, um professor de inglês sem alunos, dois irmãos proprietários de uma locadora de jogos eletrônicos e DVDs sem clientes. Assim como o conjunto de filmes acima descritos, as personagens são profissionais liberais. Ao contrário deste, sofrem interrupção ou instabilidade em seus trabalhos. De forma singular, a resolução desses dilemas é o motor da trama. Por pior situação econômica que estejam, os amigos não passam fome ou estão ameaçados de dormir na rua. Ao invés de planos para turbinar carreiras e negócios, para cultivar a solidariedade da comunidade onde residem ou para aplicar golpes em ricaços, nada disso é aventado, eles tentam mudar a situação do grupo através de um assalto à uma instituição, um banco. Quando a proposta lhes chega, não há qualquer estranhamento maior, nada é visto como um impeditivo relevante (violência, prisão, risco de morrer), pois nada é realmente debatido. Há uma lida um tanto alienada, um tanto quanto infantil, nos termos de aderir a uma aventura ou não. Na realidade, trata-se de uma história de amizade. O roubo, ao que parece, trará uma estabilidade a perder de vista (como a das personagens dos filmes acima descritos) para a manutenção da curtição fraterna sem maiores restrições econômicas. Registro que o segundo título da franquia não figura entre as 29 produções em análise, fazendo um terço de público em relação ao primeiro, ou seja, menos de 1 milhão de espectadores.
Até Que A Sorte Nos Separe conta a história de uma família (ele um personal trainer) 15 anos após ficarem milionários e que, a cada filme, metem-se numa gangorra de ora perder ora recuperar toda a fortuna. Muitas vezes, a bancarrota não obriga as personagens a abandonar espaços luxuosos e as cenas fora destes são residuais. Na verdade, destaca-se uma inadequação de origem. Os não nascidos em berço de ouro (uma classe média sempre identificada como pobre) são espalhafatosos e mal-educados, motivo de riso ao público espectador (e de repulsa e escárnio aos nascidos ricos da trama) por não pertencerem originalmente a estratos melhor remunerados e, eventualmente, à burguesia (na figura de donos de grandes negócios, acionistas de empresas, etc.). Um filme que vai certeiro neste ponto é o primeiro da franquia Vai Que Cola. Nele, conhecemos a vida do entregador de quentinha Valdomiro Pinto Lacerda, ex-empresário de uma firma de engenharia que, foragido da polícia, abandona o bairro do Leblon e refugia-se em uma pensão no Morro do Cerol, no Méier, bairro do Rio de Janeiro. Lá, conhece figuras representadas de forma estereotipada (a proprietária com coração de mãe, a balzaca fogosa, o zelador drag queen, o eletricista faz-tudo), as quais não suporta. Com a interdição da pensão pela defesa civil e a recuperação da cobertura do Leblon por Valdomiro, os suburbanos cruzam a cidade e aportam no bairro de metro quadrado mais valorizado da cidade. E é no conflito de etiquetas (ou melhor, no que é apresentado como escatologia dos pobres) que está toda a aposta de humor do filme. Registro que o segundo título da franquia, este sim todo ambientado no subúrbio, não figura entre as 29 produções em análise, fazendo um quarto de público em relação ao primeiro, ou seja, menos de 1 milhão de espectadores.
Os Penetras ecoa Vai Trabalhar, Vagabundo II – A Volta, pois trata de golpistas na alta roda, que quase não são vistos fora desse espaço. Registro que o segundo título da franquia, que mata seu protagonista, não figura entre as 29 produções em análise, fazendo um sexto de público em relação ao primeiro, ou seja, menos de 500 mil espectadores.
Em O Candidato Honesto, João Ernesto Ribamar, pessoa vinda do seio do povo pobre brasileiro, que jamais retorna a este lugar, é um político corrupto convicto que se vê obrigado a falar sempre a verdade por conta de uma mandinga de sua avó.
HÁ EMPREGO PARA O VAGABUNDO TRABALHAR?
Considerando-se os 52 filmes de maior público do período, excetuando as comédias e os filmes para a infância, que resta? 15 filmes. Onde estão os vagabundos e malandros nestas obras?
Não estão na romantização do “povo brasileiro” nem no drama político histórico: 2 Filhos De Francisco: A História De Zezé Di Camargo E Luciano e Olga.
Não estão nos dramas dos filhos da classe-média: Cazuza – O Tempo Não Para, Bruna Surfistinha, Meu Nome Não É Johnny.
Não estão nos filmes de apelo religioso: Nada A Perder, Nada A Perder 2, Os Dez Mandamentos – O Filme, Nosso Lar, Chico Xavier, Maria, Mãe Do Filho De Deus.
Quem sabe, em tempos de ofensiva do capital, tenham sido incorporados de vez a massa dos tratados como descartáveis: Tropa De Elite, Tropa De Elite 2, Carandiru, Cidade De Deus.