Violino tem som triste

“Compasso de Espera, de Antunes Filho, foi um filme que quando no surgimento causou um grande impacto na sociedade brasileira, na medida que se tratava de um projeto cinematográfico que trata o negro como um agente social de classe média, fenômeno que até então não tinha sido visto.” Celso Prudente

 

Os primeiros minutos de “Compasso de Espera”, dirigido por Antunes Filho, expõe um imbróglio ainda frequente na sociedade brasileira. Entre a realidade, a negação e o mal-caratismo, por vezes fantasiado de inocência, a sociedade compreende a maior parte do debate em torno do racismo e do preconceito através de um prisma moral, onde as questões materiais e históricas são escanteadas para dar lugar a defesa de que “no Brasil, não existe racismo nem preconceito”, afinal de contas, “tenho até amigos que são”. Se essas expressões causam repulsa, imagina assistir dois empresários alemães, “pessoas de bem”, cochicharem sobre a cor do funcionário e admitirem que não possuem qualquer problema quanto a isso, aliás, ele possui “uma escurinha de 20 anos só para ele”. 

É esse universo repulsivo e cruel que “Compasso de Espera” procura representar na tela. 

Filmado em 1969, o filme sofreu problemas com a censura da ditadura militar e demorou quatro anos para ser lançado. Em 1973, a temática de um intelectual negro de classe média, debatendo as diferentes faces e formas de racismo na sociedade brasileira, ainda possuía um caráter de ineditismo na cinematografia nacional. Quando nos primeiros minutos de projeção há um debate sobre a “intolerância racial” no Brasil, Jorge (interpretado por Zózimo Bulbul) diz que o “ problema do negro é sempre encarado com o paternalismo do branco. A data de 13 de maio libertou a consciência do branco, sem fornecer ao negro uma segurança econômica”, o entrevistador, branco, pergunta então se Jorge acredita que “a liberdade do negro ainda não é real?”.

A forma dialética com que Antunes Filho propõe o debate entre as características materiais e históricas da formação social brasileira, com a idealização de que o milagre econômico e a ideologia desenvolvimentista reacionária promove o fim de qualquer identidade, seja ela “branca, preta ou amarela” (para que todos sejam apenas “brasileiros”) é tão sagaz quanto assustadora. Sagaz porque não permite margens de interpretação ao longo da cena, especialmente quando o apresentador opõe classe e raça, alertando que o futuro da nação é acabar com a pobreza, a fome e o analfabetismo, deixando claro que o desvio do discurso é o encerramento do debate e a falta de compreensão da origem dos problemas. Assustadora porque a cena se encerra com o apresentador perguntando a Jorge se ele acredita em Deus, e no momento em que o protagonista afirma que sim, o apresentador responde “isso que importa”. 

Ora, o caráter homogeneizador, de homologação cultural, típica do fascismo, está exposto. A identidade nacional e Deus estão acima de tudo e de todos, respectivamente. Aliás, trata-se de um filme realizado durante a ditadura militar e por essa provocação, já nos primeiros minutos, podemos compreender porque a censura não gostaria de uma exibição pública de uma obra como esta. Pelo menos podemos nos orgulhar da superação desse tipo de discurso, não? Imaginar essa representação em uma figura política seria um completo absurdo. Especialmente se essa figura política ocupasse a cadeira do Planalto com as mesmas características ideológicas fascistas expostas nesse pequeno trecho. E pior ainda seria imaginar que esse mesmo político poderia dizer algo como “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”. 

Essa representação atemporal ainda assusta. 

Contudo, é entre a crise existencial do não-pertencimento integral à uma luta política, em todas suas complexidades, que afeta o personagem principal, que “Compasso de Espera” se desenvolve. Percebendo as contradições de uma sociedade moderna, onde a dúvida entre o pertencimento de classe e sua causa política entram em choque pelas diferentes formas de representação, Jorge se vê acuado entre amores, desejos e a própria causa. Antunes Filho consegue levar isso à tela através de contraposições de posições sociais, expressando que os dramas de cada personagem estão diretamente ligados à sua classe social e as diferentes formas de penetração ideológica em seu cotidiano. Não por acaso, o embate intelectual em torno da práxis política, entre Jorge e Assis (Antônio Pitanga) é uma plataforma didática entre duas compreensões, e resoluções, distintas da mesma problemática, movendo a narrativa de uma forma tão expositiva quanto dialética, na medida que não tenciona um julgamento moral unilateral, mas sim dá palco ao atrito que move o debate em torno da realidade concreta brasileira. 

De alguma forma, “Compasso de Espera” demonstra um ego que se sobrepõe ao debate político, revelando o verdadeiro caráter da classe média quando ela é despida. Mas no fim, a crônica do subdesenvolvido nos parece tão familiar quanto trágica e quando a suposta identidade de músico é colocada na mesa, um personagem nos lembra que violino tem som triste, mas nos embalos de uma música animada, Jorge pede para aumentar o som pois ela tem efeito diurético. 

Um amor tão impossível quanto a mediação entre os conflitos que se avolumam nos trópicos.